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Crítica | Assassinato em Gosford Park

por Frederico Franco
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As obras de Robert Altman dificilmente podem ser encaixadas totalmente em um gênero cinematográfico. Sempre com caráter crítico, o diretor consegue mesclar a sátira e drama existencial e dar tons cômicos a situações de guerra. A capacidade de transitar por entre aspectos de gênero é uma das características mais marcantes de Altman, tornando seus filmes em objetos heterogêneos, fugindo de clichês das generalidades de linguagem dos clássicos hollywoodianos, por exemplo. Em Assassinato em Gosford Park isso fica claro a partir da seguinte experiência: lendo diversas sinopses relativas ao filme percebe-se que muitas buscam enquadrá-lo no gênero do suspense devido ao mistério criado na segunda metade da película. A questão, aqui, é nos questionar: é realmente esse o foco do filme de Robert Altman?

Respondendo à pergunta: não, dificilmente Altman tenta criar um filme de suspense. Por mais que diversas vezes o assassinato (elemento do mistério) seja entendido como ponto central da trama, o que encanta em Assassinato em Gosford Park é a dinâmica entre os personagens e a tensão desenvolvida entre as classes sociais. Burgueses e proletários são colocados em contraste em um jogo de poder dentro de uma labiríntica mansão na qual o filme se desenvolve. A similaridade com a obra-prima de Jean Renoir, A Regra do Jogo, é notável: dramas burgueses interpelados por tensas relações entre patrões e empregados. Contudo, uma diferença clara entre os dois é que, enquanto no clássico dos anos 1930 tudo é encenado a fim de criar uma atmosfera farsesca e maneirista, o filme de Robert Altman opõe a artificialidade à organicidade.

É inegável o talento de Robert Altman em estabelecer obras críticas. Dois de seus filmes mais famosos, O Jogador e M*A*S*H, são construídos por meio de um olhar cínico do autor diante dos ambientes diegéticos: o establishment cinematográfico dos EUA e um batalhão militar, respectivamente. Em relação com O Assassinato em Gosford Park, o segundo filme citado é o que mais se aproxima; sem direcionar protagonistas, ambas as películas preferem abordar situações através de uma dinâmica de coletividade, na qual o movimento social e de relacionamento dos personagens é mais importante do que as pessoas isoladas. Esse dinamismo é retratado por Altman à sua peculiar maneira: uma mise en scène na qual o diretor permite aos corpos ali presentes simplesmente fluírem de modo orgânico, quase como um balé. Essa opção também dificulta maiores aproximações do espectador para com os personagens, fazendo o caminho inverso da tradição clássica do cinema. Basicamente, Robert Altman, na maior parte do filme, escolhe não glamourizar os fenômenos da vida humana. Se Béla Balázs aponta que o close up é o elemento capaz de mudar o cinema por dar uma nova visão da vida humana ao espectador, Altman vai na contramão. Em O Assassinato em Gosford Park a vida se manifesta como ela é: poder e movimento. 

No entanto, o diretor consegue criar uma importante cisão entre os dois lados da moeda. Por mais que em termos gerais a premissa se mantenha a mesma (dar palco ao movimento livre da câmera e dos personagens), Altman, em delicados detalhes, pontua uma importante distinção entre burgueses e proletários. Do lado burguês, percebe-se maior preocupação naturalista com cada um dos planos; existe uma clara tentativa de maior fragmentação do espaço-tempo cinematográfico, sendo a montagem mais ativa. Tais articulações criadas por Altman dão ao ambiente burguês uma atmosfera artificial, assim como as próprias relações desses personagens. Vivendo em uma bonança eterna de uma vida de luxúria e interações fúteis, a parcela dotada de alto poder aquisitivo é representada por meio de uma impressão de realismo. A hipocrisia moral pode também ser percebida por essa dúbia opção estética: assim como suas falhas éticas são mascaradas por um moralismo porco, a mise en scène de Robert Altman busca criar um microcosmos diegético de falsa realidade. Esses movimentos adotados pelo diretor acabam, por consequência, criando uma barreira de identificação entre tais personagens e nós, a audiência, como se não fossemos pertencentes a este reservado universo. Do outro lado da moeda, no reservado dos empregados da casa, O Assassinato em Gosford Park mostra uma postura diferente. Deixa-se de lado a linguagem enquanto intrusa na cena, participando apenas em sua essência: como um meio. Os personagens interagem de modo orgânico, nada parece ter sido programado ou ensaiado. As ações apenas acontecem livres de qualquer interferência na mise en scène

E quando empregados e patrões dividem a cena? A saída de Altman é funcional, porém, de certa maneira, preguiçosa: para evidenciar esse contraste, o diretor recorta o espaço-tempo para dividir os dois blocos sociais ali apresentados. Essa distinção possui certa lógica dentro de uma lógica interplanos, algo que já vinha sendo construído até então, mas falta aquilo que mais encanta na carreira de Robert Altman: poder e movimento. Relações espaço-temporais intraplanos tão bem trabalhadas dentro dos seccionados núcleos sociais apresentados são pouco exploradas quando os dois lados da moeda são confrontados dentro do mesmo espaço diegético. Existe um elemento dentro da mise en scène que sobressai aos olhos quando se trata dessa divisão aqui exposta: um breve contraste cromático entre os ornamentados cenários burgueses e os uniformes pretos dos serviçais da casa. Esse embate, por mais volátil que seja, causa um impacto perceptivo muito forte – as próprias roupas dos patrões, lambidas por tons de ouro e prata, ajudam a criar essa barreira entre ambos grupos. O problema: essa percepção imediata é subaproveitada em detrimento do uso de uma montagem que atue como fator decisivo desta seção.

Agora, o ponto narrativo que delimita uma queda brusca do universo desenvolvido por Altman é a introdução de um assassinato na trama. Tudo é feito em torno do clássico mistério de “quem matou o patriarca da família”. A própria figura extremamente farsesca de um detetive à la mode Sherlock Holmes causa estranhamente dentro da sutil ironia do filme até então. Recebendo um ar sombrio de suspense neo-noir, O Assassinato em Gosford Park parte para um caminho de personalização das relações interpessoais, no qual se sobressaem certos personagens, tomando certo protagonismo. A encenação de Robert Altman parece ceder mais espaço individual aos personagens; as massas corpóreas que antes se moviam em uma desgovernada sintonia parecem se acalmar, dividindo-se em indivíduos. Aquilo que dá suspense ao filme é, também, aquilo que desmonta seu encanto.

Por fim, é razoável concluir que ambos assassinato e resolução final proposta pelo filme acabam em um esquema de retroalimentação por meio do discurso verbalizado. Tudo feito em volta do assassinato do chefe da família é nada mais do que um reforço da ideia governante exposta a partir da dinâmica de classes trabalhadas. A tentativa de expor a hipocrisia da burguesia por meio do arco envolvendo o assassinato referido se mostra frágil e menos efetivo daquilo que Altman trabalha a partir de sua fina ironia. Por mais que O Assassinato em Gosford Park não seja, prioritariamente, um filme de suspense, em dado momento tenta ser um a fim de valorizar seu discurso. Entretanto, fica escanteada a potência crítica, marca registrada de Robert Altman, justamente quando, em uma das poucas em sua carreira, o diretor parece tentar se enquadrar em gêneros. 

Assassinato em Gosford Park (Gosford Park) – Inglaterra, Itália, EUA, 2001
Direção: Robert Altman
Roteiro: Julian Fellowes
Elenco: Maggie Smith, Michael Gambon, Kristin Scott Thomas, Camilla Rutherford, Charles Dance, Geraldine Sommerville, Tom Hollander, Natasha Wightman, Jeremy Northam, Bob Balaban, James Wilby, Claudie Blakely, Laurence Fox, Stephen Fry, Kelly Macdonald, Helen Mirren, Clive Owen, Emily Watson, Richard E. Grant
Duração: 131 min.

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