Home FilmesCríticas Crítica | Assassina (2023)

Crítica | Assassina (2023)

O horror da vida.

por Ritter Fan
119 views

Em algum momento, há algumas décadas, perdi todo o interesse que tinha em filmes de horror. Não deixei de assisti-los por completo, claro, pois volta e meio vejo alguns aqui e ali, mas sem aquela vontade que tinha quando mais jovem. Nunca soube bem o porquê, porém, se foi em razão de amadurecimento em uma direção que me levou para longe do gênero ou se foi alguma outra coisa ou uma conjunção de fatores, mas, quando os créditos de Assassina começaram a subir, pensei com meus botões ainda no escuro do cinema e acho que finalmente entendi a razão – ou pelo menos uma das razões – de eu ter me afastado do horror: filmes dramáticos baseados em fato horríveis da vida real conseguem, em linhas gerais, ir muito, muito além do tipo de horror que filmes de pura ficção do gênero consegue me oferecer. Monstros? Demônios? Serial killers mascarados? Gosmas alienígenas? Nada disso chega próximo às guerras, violência contra o próximo e, como é o caso do longa sob exame, o infanticídio ou, talvez mais amplamente categorizando, o generocídio.

Passado no começo do século XX em uma ilha não nomeada na Grécia, o longa de Eva Nathena baseado em festejado romance de Alexandros Papadiamantis acompanha a vida de Hadoula Frangoyannou (Karyofyllia Karabeti em uma interpretação espetacular), uma senhora de meia idade que é como uma pajem na aldeia em que mora. Ela faz partos, trata doentes, pede que o padre local faça suas bênçãos quando determinada situação está complicada, guarda na cabeça todo o tipo de superstição e cerimoniais ancestrais e assim por diante. Sua presença é constantemente requisitada na empobrecida localidade e ela é respeitada por todos, inclusive cumprindo funções que ela precisa manter em segredo absoluto, como fazer abortos de mulheres estupradas por seus próprios familiares e, sim, matar crianças recém-nascidas que estejam doentes ou simplesmente por serem do sexo feminino.

Afinal, ironicamente, apesar de Hadoula ser, ela própria uma mulher de conhecimento vasto e importância central para a aldeia, o “ser mulher” na sociedade patriarcal em que vive é quase a mesma coisa que nada e todos – pais e mães – torcem pelo nascimento de um filho, não de uma filha. Uma bebê ou uma menina pequena, ali, é um ônus à família, mais uma boca a ser alimentada em meio á fome por que todos passam. Um bebê ou um menino pequeno, ali, é a promessa de força, de mãos para trabalhar, ainda que, também ironicamente, os jovens homens, logo quando podem, abandonam o vilarejo em busca de oportunidades melhores. E Hadoula carrega, em seus ombros, o horror ancestral que é o conjunto de atos indescritíveis perpetrados contra as mulheres na ilha, reflexo de uma sociedade extremamente patriarcal que faz do homem o centro de tudo e relega a mulher a um objeto, a não mais do que alguém equipada a gerar filhos homens. Além disso Hadoula carrega o trauma da rejeição de sua mãe que ela vê constantemente em suas visões pelas noites que passa acordada cuidando dos outros e colhendo ervas nas montanhas que ninguém mais chega perto. Hadoula vive o inferno na Terra mais do que seu pares por saber o que gravita ao seu redor e ao redor de todos ali. Por não viver na ignorância completa, ela vive no sofrimento completo e toda essa carga, essa responsabilidade e essa claridade de visão a quebra, a faz caminhar na direção do cometimento de infanticídio de bebês do sexo feminino e meninas pequenas com o objetivo de poupá-las dos vindouros sofrimentos pelos quais elas inevitavelmente passarão.

E o horror disso tudo é notar que esse comportamento – sim, exacerbado em Hadoula, mas ela, aqui, é um símbolo, uma metáfora – reflete o comportamento de sociedades inteiras que “preferem” meninos e não hesitam em eliminar bebezinhas. O generocídio é real. Foi real há séculos em relação aos bebês do século masculino em razão de guerras e para evitar a formação de exércitos por nações inimigas, mas, na chamada modernidade, se deu – e ainda se dá – em razão de outros aspectos que vão de religião até simplesmente a incapacidade de se reconhecer o valor da mulher na sociedade. Assassina é um filme que tem como objetivo chamar atenção para isso e Nathen o faz pintando um quadro assustador que torna dificílimo assistir sua obra até o fim, transferindo eficientemente para o espectador a dor que Hadoula sente.

Para conseguir seu objetivo, Nathena trabalhou com o diretor de fotografia Panagiotis Vasilakis para criar um pesadelo visual, um longa que, quando acabou, eu tive que me esforçar para lembrar que era à cores e não em preto e branco tamanha a eficiência com que a cor é expurgada da obra, com uma atmosfera desolada que é amplificada pelo cenário árido e rochoso que parece pegar o espectador pela gola para estapeá-lo de maneira a fazê-lo acordar para a realidade ou para uma realidade que ele sequer tem consciência de que existe. Nada em Assassina é agradável ou bonito. Nada está ali para apaziguar, somente para inquietar, para revoltar e para fazer lembrar que vivemos em um mundo de horrores e de sofrimento.

Não se trata, portanto, de um filme para ser visto esperando algum respiro. Assassina é desgraça, morte, dor e angústia do começo ao fim. Uma obra que agride o espectador para acordá-lo de seu torpor. Não tem filme de horror que consiga fazer o que Eva Nathena faz aqui.

Assassina (Fonissa – Grécia, 2023)
Direção: Eva Nathena
Roteiro: Katerina Bei (baseado em romance de Alexandros Papadiamantis)
Elenco: Karyofyllia Karabeti, Maria Protopappa, Elena Topalidou, Penelope Tsilika, Georgianna Dalara, Christos Stergioglou, Niki Papandreou, Dimitris Imellos, Giannis Tsortekis, Olga Damani, Ersi Malikenzou, Maria Skoula, Agoritsa Oikonomou, Michalis Ikonomou, Rita Lytou, Stathis Stamoulakatos, Veronika Davaki, Mania Papadimitriou
Duração: 97 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais