Aristófanes me parece mais secretamente brincalhão em As Vespas do que em seus trabalhos anteriores. Três de suas peças sobreviventes antes da composição dessa comédia de 422 a.C. conseguiram destacar bastante (mesmo que não exatamente como núcleo principal) inúmeras questões políticas da cidade de Atenas, com destaque, claro, para a peça Os Cavaleiros. Em As Vespas, o comediógrafo não abandona esse olhar crítico para a sua realidade social, mas ele está muito interessado em fazer outro tipo de comentário, em destacar com muito mais intensidade a relação entre pai e filho e a ideia de que chega um momento da vida em que é impossível ser verdadeiramente mudado, ao menos a curto prazo. Há também uma outra forma de interpretar a saga do homem mais velho nessa comédia: ele na verdade está passando por uma trajetória de rejuvenescimento, de reavivamento de sua mentalidade, de sua alegria de viver e se dispor a aproveitar a vida, colocando as ocupações e os vícios inúteis de lado… até onde consegue fazê-lo, claro.
O começo da peça é bastante engraçado e imediatamente crítico, porque expõe um personagem chamado Filoclêon (“amigo de Cleon“), um homem idoso que é trancado em casa pelo filho Bdeliclêon (“inimigo de Cleon“), que não aguenta mais ver o pai saindo ao raiar do dia para agir como juiz do povo de Atenas. Filoclêon era absolutamente vidrado nessa ocupação, e se orgulhava do medo que causava nos acusados, dos presentes e ofertas que recebia e da “pompa” que a posição de juiz lhe dava. O poeta cria aqui um embate que é resolvido de forma bastante simples, ao colocar pai e filho discutindo sobre os prós e os contras de agir como juiz na cidade. E o filho ganha o debate de maneira esclarecedora, apresentando aquilo que é a crítica central de Aristófanes nessa peça: esses homens eram uma marionete nas mãos dos grandes políticos e demagogos da cidade, que ganhavam rios de dinheiro a partir dos desmandes jurídicos causados por essas “vespas”.
O contexto histórico para esse amor todo de Filoclêon em relação ao exercício da justiça e à percepção de poder que poderia ganhar com isso é interessante. A ação da peça se passa durante a Guerra do Peloponeso (431 – 404 a.C.) e neste período o tipo de justiça coletiva e direta que era exercida em Atenas sofreu uma curiosa modificação. Antes de falar sobre ela, é necessário apresentar, em rápidas palavras, como era essa justiça, de fato. Após a reforma de 462 a.C., a maioria dos julgamentos em Atenas ocorriam através de júris populares (exceção aos crimes de sangue e outros casos particulares), enquanto os magistrados ficaram com funções secundárias, coletando provas e organizando a agenda do julgamento. Esse júri popular era composto por 500 cidadãos sorteados entre os 6.000 membros de Helieia, que era o “tribunal supremo”, também formado por sorteio entre todos os cidadãos com mais de 30 anos, sem dívidas e em plenas faculdades físicas e mentais.
Esses homens deveriam ouvir o discurso e a base legal do acusador mais as suas testemunhas, e fazer a mesma coisa da parte do acusado e sua defesa. Em seguida, votavam por maioria sobre a inocência ou culpa da pessoa em julgamento. Durante a Guerra do Peloponeso, em 425 a.C., Cleon aumentou o valor do soldo dos juízes da Helieia de dois para três óbolos, o que atraiu um grande número de idosos, pois esta era uma função que não exigia muito esforço e que eles podiam exercer tranquilamente, inclusive fazer com que os casos fossem julgados no período da manhã e eles pudessem ficar com o restante do dia livre. Isso aumentou a popularidade de Cleon e fez com que muitos idosos procurassem avidamente participar de mais decisões como juízes, porque assim ganham mais óbolos. É esse ciclo vicioso de manipulação indireta e formação de uma migalha de poder nas mãos dos velhos juízes que Aristófanes alfineta aqui, colocando todas essas verdades na boca do filho, que denuncia inclusive o fato de que esses homens comiam nas mãos de políticos como Cleon e nem se davam conta disso.
O que esse filho quer, portanto, é dar uma condição de vida melhor para o pai. Trata-se claramente de uma família de posses, e o filho pode presentear o velho com bons mantos, boas sandálias, mesa farta, festas e bons encontros. Mas Filoclêon acha que seria melhor se continuasse com sua atividade de julgar E condenar as pessoas (sim, o vício dos vereditos também é criticado). A base cômica da peça, porém, está majoritariamente na primeira parte, antes da parábase (momento de conversa, sobre diversos temas, do Coro com o público). O que vem depois é uma tentativa de adequação do pai à vida caseira — é criado até um julgamento de mentirinha das coisas do cotidiano — e aos “bons hábitos sociais“, mas isso acaba saindo mal, porque o velho não tem nenhum tipo de traquejo nas relações pessoais, não sabe se livrar diplomaticamente de uma situação espinhosa, só sabe mesmo é exercer um julgamento viciado com base em ameaças e ser paparicado para dar um voto positivo em relação à sentença que julga.
As Vespas levanta uma discussão relevante para os nossos dias, em vários de seus aspectos. A gente pode fazer uma leitura aproximada, inclusive, para como bolhas ideológicas na política, na religião, na ciência e em diversas outras áreas engajam pessoas através de redes sociais e os vicia em julgar, em proliferar condenações e criar uma espécie de grande tribunal de vespas prontas para falar mal de alguém ou algo que odeiam. Outro ponto que também é discutido na peça é a banalização da palavra “tirania“. Bdeliclêon reclama que toda vez que alguém não gosta de alguma coisa, diz que está sendo cometido contra ele um ato tirânico. Eis aí outra aproximação que podemos fazer com palavras utilizadas e de forma tão banal hoje em dia e que simplesmente acabam perdendo qualquer sentido mais sério. Isso nos mostra que as vespas viciadas em condenar e banalizar palavras ou expressões não são uma novidade social; não são um horror apenas de nossos dias. Mas infelizmente isso não diminui o estrago que essa gente faz.
As Vespas (Sphēkes / Σφῆκες) — Grécia, 422 a.C.
Autor: Aristófanes
Edição lida para esta crítica: Zahar (1996)
Tradução: Mário da Gama Kury
110 páginas