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Crítica | As Oito Montanhas

Uma amizade entre duas almas completamente diferentes.

por Luiz Santiago
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Chega a ser engraçado o fato de que uma das coisas teoricamente mais simples das relações interpessoais, a amizade, acabe se tornando uma das mais complexas e interessantes, principalmente porque existem características inexplicáveis no trato e no sentimento entre dois amigos que jamais serão verdadeiramente compreendidos por pessoas fora daquela relação. Em 2016, o escritor milanês Paolo Cognetti explorou esse contexto em seu livro Le Otto Montagne, falando da amizade desenvolvida, durante um verão, entre Bruno e Pietro, numa parte isolada dos Alpes italianos. A obra ainda explora uma outra camada de relações humanas, entre pai e filho, e dá uma perspectiva lírica para o conflito geracional, que também circunda as montanhas, como se as emoções, o contato, os obstáculos no diálogo e a dificuldade de fazer-se expressar para o outro seguissem a dinâmica das estações do ano em uma região de relevo alto.

A adaptação cinematográfica do livro, dirigida por Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch, explora os meandros da relação entre os protagonistas e ainda dedica algum tempo para as questões familiares, seja no contato entre pais e filhos, seja no evento das relações amorosas. O filme é bem longo, mas não existe cansaço aqui, mesmo que estejamos diante de uma narrativa lenta, que toma o devido tempo para construir e transmitir a sensação de isolamento, aconchego e interação do indivíduo com as montanhas e a natureza ao seu redor. No primeiro bloco, o roteiro opõe o cotidiano de Pietro na cidade de Turim, e a vida livre e laboriosa de Bruno em Grana, o vilarejo onde os dois se encontravam durante o verão e onde a amizade floresce. Mesmo entre idas e vindas, uma grande amizade se ergue e se solidifica no decorrer de muitos anos, com consideráveis hiatos entre os encontros, e este é um dos pontos que tornam As Oito Montanhas um filme muito especial.

Latinos em geral, mas especialmente brasileiros, possuem uma cultura de relações íntimas muito marcada pelo toque, pela demonstração de carinho, pela comunicação que, se não é verbalmente evidente, demonstra-se através de abraços ou variações físicas de um corpo com outro. E nesse ponto, é claro que estou fazendo um recorte que não representa pessoas cuja linguagem pessoal/temperamental não lida bem com o toque, e também homens que têm ojeriza ao contato masculino amigável, dada a sua masculinidade frágil. Exceto nessas situações, é muito comum para indivíduos de nossa cultura demonstrar sentimentos, carinho e importância para com amigos muito próximos. É por isso que nos chama muito a atenção o fato de Bruno (Alessandro Borghi) e Pietro (Luca Marinelli) terem uma amizade íntima, conhecerem-se muito bem, claramente amarem um ao outro, mas construírem uma linguagem fraternal que, após o período de infância, limita-se ao mínimo de demonstração direta de tudo o que sentem, com poucos toques e também poucas palavras. Nesse ponto, vale o máximo destaque para a ótima atuação da dupla de atores, que nos faz sentir todo o amor envolvido através de outros meios que não os óbvios — ou mesmo desejados, por espectadores como nós.

Talvez pela influência da prosa de Paolo Cognetti, o roteiro aqui (escrito pelos diretores do filme, ao lado do autor do livro) está dividido em “cenas da vida“, exibidas em ordem cronológica, mas com saltos temporais elencados em cortes secos e inesperados que, às vezes, quebram o ritmo do filme ou interrompem um momento dramático que merecia mais tempo de tela. Mesmo que não tenha problemas de compreensão em sua organização dramática, As Oito Montanhas tem um ritmo que está o tempo inteiro desconectando o espectador de momentos marcantes, para jogá-lo em situações vazias de significado e com as quais o público não consegue estabelecer afinidade. Pelas escolhas da direção, fica claro que este choque constante, vindo pelo trânsito de Pietro entre os lugares, era a intenção. Na prática, porém, o filme perde momentaneamente o seu brilho para dar espaço a sequências que não trazem coisas importantes, e é aí que eu passo a ter problemas com essa escolha da montagem, uma vez que tal desperdício poderia ser transformado em tempo de qualidade, trazendo mais cenas na montanha ou interações entre os protagonistas.

O uso das montanhas como personagens e das estações do ano como reguladoras de emoções tornam o longa fortemente poético, cultivando no espectador o sentimento de solitude e vulnerabilidade (por estar entregue a um espaço aberto), onde se pode ouvir os próprios pensamentos — percebam que o uso do silêncio, no filme, é certeiro. Os diretores escolheram uma trilha sonora mínima, e o fato de as poucas canções e música instrumental serem o folk/blues bucólico do sueco Daniel Norgren, acrescenta uma aura encantadora até mesmo inesperada nesse tipo de obra. A voz de Norgren nos remete à “música do campo“, e isso dá ainda mais brilho à montanha como personagem, ao espaço geográfico que serve de ponto entre dois amigos imensamente diferentes, que não estão juntos o tempo todo, mas que estão dispostos a qualquer sacrifício para ajudar-se, para fazer com que o outro se sinta feliz. O reforço simbólico e permanente dessa amizade pode ser visto na construção da casa e nas trilhas percorridas em diferentes momentos da vida desses dois homens, que seguiram por caminhos diferentes e fizeram escolhas diferentes, até serem afastados em definitivo… pela natureza que os uniu. Um amor fraternal que atravessou a vida de ambos, e que os marcou para sempre.

As Oito Montanhas (Le otto montagne / The Eight Mountains) — Itália, Bélgica, França, Reino Unido, 2022
Direção: Felix van Groeningen, Charlotte Vandermeersch
Roteiro: Paolo Cognetti, Charlotte Vandermeersch, Felix van Groeningen
Elenco: Lupo Barbiero, Cristiano Sassella, Elena Lietti, Chiara Jorrioz, Filippo Timi, Fiammetta Olivieri, Gualtiero Burzi, Adriano Favre, Andrea Palma, Francesco Palombelli, Alex Sassella, Luca Marinelli, Leandro Gago, Daniela De Pellegrin, Alessandro Borghi
Duração: 147 min.

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