Embora tenha ficado em terceiro lugar no festival em que foi apresentada, As Nuvens foi considerada por Aristófanes a sua melhor peça até aquele momento, e o autor faz questão de, na reescrita da trama (versão que chegou até nós), destacar a “injustiça” do júri ao não dar a vitória à sua criação por ocasião da apresentação original. Trata-se de uma das mais antigas “comédias de ideias” da História, e até hoje desperta bastante interesse porque tem, como um dos personagens, o filósofo Sócrates (que foi contemporâneo de Aristófanes) recebendo um tratamento jocoso e, de certa forma, depreciativo.
Certa manhã, o fazendeiro Strepsíades acorda bastante perturbado por ver se aproximar o dia que seus credores irão à sua porta. Fidípides, seu filho, vive uma vida de excessos e o pai não consegue controlá-lo, de modo que todo o aperto financeiro do velho se dá pelos gastos sem limites do jovem rebento, que só pensa em dormir, comprar cavalos de corrida e viver os mais diversos prazeres possíveis. O monólogo de abertura, declamado por Strepsíades, lança uma das principais sementes da peça, que é chamar a atenção para o conflito de gerações e para a maneira como os valores e até mesmo a forma como um geração educa a outra mudam consideravelmente, trazendo impensáveis consequências para os mais velhos.
Mais adiante, quando o Raciocínio Justo e o Raciocínio Injusto entram em cena, esse conflito irá receber a sua coroação, somado a todo o dilema filosófico e a toda a discussão sobre o mundo das ideias que o comediógrafo explora. Aristófanes não vê com bons olhos os “novos pensamentos” daquela sociedade e faz com que Strepsíades e Fidípedes sejam símbolos do povo de Atenas, tratado como estúpido; enquanto Sócrates, os sofistas e todas as atividades do Pensatório são representados como as grandes “perdições” da existência humana, com ideias que vão contra a tradição e que “para nada servem“. Sócrates é apresentado de uma forma bem bizarra, suspenso no ar em uma cesta, e ele justifica que está naquela posição porque àquela altura, lhe é permitido impulsionar sua mente e pensamentos para cima, misturando-os com o ar e, assim, fazendo grandes descobertas.
As nuvens (personificadas através do Coro) são a representação dessas novas ideias que, para Aristófanes, são impiedosas. E o interessante é que, assim como são passageiras e vivem tomando as mais absurdas formas, as nuvens são o símbolo perfeito para essas ideias criticadas, e pelo menos na primeira parte da peça, há uma enorme quantidade de momentos engraçados onde os sofistas são escrachados, ensinando a medir o pulo de uma pulga, o gênero dos objetos ou estudando astronomia apontando o ânus para o céu. Aristófanes não perdoa a “nova filosofia e os novos filósofos” da mesma forma que critica a vontade dos cidadãos da cidade em buscar saídas fáceis para os seus problemas pessoais, muitas vezes caindo nas mãos de charlatões que nada ensinam útil.
Para mim, a peça cai de qualidade após o estabelecimento dos dois raciocínios. A discussão é boa, em muitos pontos é engraçada, mas parece não chegar a um lugar bem definido, assim como a sequência desse bloco de “ensino” a Fidípedes. Sim, é verdade que a crítica do autor à mudança do sistema de ensino em Atenas permanece ativa e o velho Strepsíades é forçado a reconhecer que o novo método só pode levar a absurdos justificados com boa lábia, como o filho bater no pai e achar que está tudo bem isso acontecer. O encerramento, porém, com ele clamando aos deuses que renegou e incendiando o Pensatório de Sócrates e de seus alunos parece solto, como se fosse uma ponte para algo que não aparece no texto. O leitor não se esquece dos ótimos momentos da primeira parte e das linhas críticas que são apresentadas nesta, que é uma das mais famosas peça de Aristófanes, mas certamente terá dificuldades em ver o arranjo final da obra com bons olhos.
As Nuvens (Nephelai / Νεφέλαι) — Grécia, 423 a.C.
Versão que chegou até nós: revisões de 419 – 416 a.C.
Autor: Aristófanes
Edição lida para esta crítica: Zahar (1995)
Tradução: Mário da Gama Kury
120 páginas