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Crítica | As Noites Ainda Cheiram a Pólvora

Dois filmes que não se sustentam.

por Frederico Franco
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As Noites Ainda Cheiram a Pólvora é um experimento, de certa forma, ambíguo. Mas essa dinâmica não se sustenta enquanto opção estética. Não se parece, aqui, uma experimentação a partir do paradoxal – muito pelo contrário. Inadelso Cossa, de um modo atrapalhado, nos apresenta um universo dúbio cuja potência se esvai ao longo de toda sua duração. Em seu longa-metragem existem, estranhamente, dois filmes completamente distintos que, de maneira alguma, parecem se completar por meio de suas diferenças. E essa ruptura é marcada esteticamente pela oposição entre imagens noturnas e diurnas. A noite, expressiva, está em um pólo diametralmente oposto ao dia, momentos de menor inspiração do diretor. O filme de Cossa é um exercício de recuperar memórias de seu povo atravessadas pela violência de uma guerra civil que marcou toda uma geração moçambicana – incluindo a própria família do realizador, representada, aqui, por sua avó. Existe, no filme, uma possível veia política característica do cinema de Moçambique, evocando possíveis referências ao trabalho de Sarah Maldoror. A diferença é que a diretora não trabalha com a temática da memória propriamente dita, haja visto que sua produção atravessa os anos anteriores ao conflito armado, trabalhando pouco antes do estopim da guerra.

As primeiras construções imagéticas de Inadelso Cossa são marcadas por uma peculiaridade criativa potente. Cenas noturnas pouco iluminadas, envolvendo seus personagens por entre as sombras da noite. Ali, entre esse jogo de iluminação precária, Cossa afirma querer evocar as vozes dos mortos. A noite, portanto, torna-se um espaço propício para o surgimento daqueles que já não caminham entre nós. É quase como um filme de terror. A madrugada silenciosa e suas sombras opressivas dão calafrios na espinha do espectador. Nesse jogo aterrorizante, a memória dos que já foram é trazida à tona com uma expressividade marcante. As falas dos entrevistados e até mesmo os diálogos da equipe do filme são marcadas por uma expressividade verborrágica intensa. No entanto, a presença da voz do diretor, em certos instantes, parece demasiada poética, com um tom quase profético. O mais impactante são os relatos inconstantes dos parentes de Inadelso Cossa. Há neles uma potência expressiva natural marcada por uma recusa da linearidade causal da história que contam. A narrativa é abordada a partir de fragmentos, pequenos recortes de uma vivência que pende entre a memória e o esquecimento.

Desde seu princípio ficam claras as intenções de Cossa com As Noites Ainda Cheiram a Pólvora. Trata-se de um exercício de recuperação de memória de um tempo marcado pelo medo, pela violência. Imageticamente, nas sequências noturnas, o diretor consegue dar conta de explorar esse discurso. Busca-se trazer para a luz do cinema, como pontua o próprio diretor, o passado que, até hoje, marca as dinâmicas sociais e econômicas de seu vilarejo. Dentro da densa noite as lembranças da guerra são trazidas por meio dos escombros da memória, representados pelo interessante chiaroscuro da fotografia do filme. A presença física do diretor na noite é uma forma de construir visualmente sua viagem historiográfica em direção aos anos que não lhe pertence. Os personagens que realmente viveram os árduos tempos abordados por Inadelso Cossa são lançados sem pudor em direção às sombras da noite, tendo sua própria imagem fraturada pelo escuro: vemos pouco dos protagonistas, geralmente tendo seu corpo escondido em meio à mata e na ausência de luz.

Por mais que durante os primeiros quarenta minutos o filme de Inadelso Cossa seja capaz de prender o espectador vidrado em sua narrativa, surge a ruptura estética marcada pelo advento de cenas diurnas. Aparece, então, um  segundo filme nada intrigante em comparação com o anterior. Os recortes feitos à luz do dia dão conta de apresentar o cotidiano da aldeia do diretor de um modo até mesmo preguiçoso. Essas sequências, quando introduzidas, parecem deslocadas de toda a dinâmica noturna estabelecida anteriormente. Não existe algo próximo do impacto visual e expressivo antes construído pela mise en scène noctívaga. Surgem, então, enfadonhos e longuíssimos talking heads que pouco contribuem para o filme enquanto elemento estético. Sai a expressividade e entram preocupações meramente narrativas. As Noites Ainda Cheiram a Pólvora parece perder sua veia autoral construída em sua primeira metade em prol de uma linearidade causal. O diretor, nesse ponto, demonstra mais preocupação em contar uma história marcada por uma compreensão total dos fatos, beirando uma essência teleológica.

A partir da última meia hora as cenas diurnas já são maioria no longa-metragem de Inadelso Cossa, tomando por completo as rédeas narrativas. Toda a potência anteriormente desenvolvida cai por terra; já estamos acostumados com as entrevistas e conversas simplórias baseadas na linearidade. Quando, eventualmente, retornam fragmentos noturnos, já não se vê presente o encanto experimental construído no princípio da obra. O linear toma de assalto o promissor lirismo proposto por Inadelso Cossa durante a noite. O resultado: uma obra que, primeiramente, ousa, mas acaba por não ter coragem de se sustentar esteticamente.

As Noites Ainda Cheiram a Pólvora – França, Alemanha, Moçambique, Holanda, Noruega, Portugal, 2024
Direção: Inadelso Cossa
Roteiro: Inadelso Cossa
Elenco: Maria, Moises, Inadelso, Anacleto, Elisa
Duração: 92 min.

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