Home FilmesCríticas Crítica | As Mil e Uma Noites: Volume 2 – O Desolado

Crítica | As Mil e Uma Noites: Volume 2 – O Desolado

por Luiz Santiago
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…No qual Xerazade narra como a desolação invadiu os homens:

Oh venturoso Rei, fui sabedora de que uma juíza aflita chorará em lugar de ditar a sua sentença, na noite de três luares. Um assassino em fuga vagueará pelas terras interiores durante mais de quarenta dias e tele transportar-se-á para fugir à Guarda, sonhando com putas e perdizes. Lembrando-se de uma oliveira milenar, uma vaca ferida dirá o que tiver a dizer e que é bem triste! Moradores de um prédio do subúrbio salvarão papagaios e mijarão em elevadores, rodeados por mortos e fantasmas; mas também por um cão que….

…E vendo despontar a manhã, Xerazade calou-se. É com base nas desgraças pessoais, depois de mostrar a inquietude de uma nação inteira no Volume 1, que Miguel Gomes vai buscar as causas e as consequências das muitas crises — aqui ampliadas para o caos cultural e as crises morais e éticas — que deixaram Portugal em uma situação miserável. A política de austeridade do governo e o empobrecimento da maioria dos portugueses voltam a aparecer e o ritmo que o diretor emprega na narrativa é bem mais preciso, milimétrico, a começar pelo escrupuloso conto de Simão Sem-Tripas. A escolha desse tipo de história, em princípio, veio bem a calhar neste episódio, porque ele sai do campo macro e vem para o microcosmo, para os erros, a corrupção, o crime e as ações indesejadas não em escala internacional, junto ao Banco Mundial ou o Poder Executivo. Este segundo filme mostra a desolação do povo, mas o título é uma armadilha: essa desolação é tanto infligida pelo Estado quanto cultivada pela própria nação.

Apesar de ter um primeiro e um último bloco com alguns percalços na escolha para o que deveria ou não entrar para o corte final — os mini-atos dentro do último conto atrapalharam minimamente a narrativa, embora não sejam descartáveis –, é fato que Miguel Gomes está esteticamente mais maduro aqui do que em O Inquieto. Seus sempre belos closes e primeiros-planos no rosto dos atores, sua exibição coerente da nudez e a exploração da natureza aparecem muito fortemente aqui, em cada um dos três blocos e plenamente justificados.

Não há dúvidas de que O Desolado se tornou o que é devido ao melhor momento dessa épica trilogia até o momento, o episódio As Lágrimas da Juíza. O bloco inteiro é uma alegoria sobre o funcionalismo público — bastante ironizado na introdução de O Banho dos Magníficos em O Inquieto –, e ao mesmo tempo uma caricatura de toda a máquina política e social de Portugal, dos crimes do setor agropecuário e de pensão alimentícia até as denúncias de corrupção para famílias tradicionais, banqueiros e empresários de renome, com forte participação na economia do país. O elemento onírico retirado a fórceps do roteiro no Primeiro Volume, aparece aqui de forma orgânica e sob várias modelagens: com um gênio que desmascara toda a criação de “necessidades públicas” que sempre dão lucros indevidos a empresas; uma vaca que zomba do público sobre um diálogo moral que teve com uma velha oliveira, mas que nós não podemos ouvir; e uma combinação de tradições arcaicas incompatíveis com o mundo contemporâneo que adicionam uma camada à desolação que o título do filme nos prega.

Percebam que a base para as críticas neste ponto são provenientes de um povo sem esperanças de que o país onde vivem poderia melhorar. A crise, por assim dizer, assola, ameaça e põe medo em todos, o que de certa forma “justifica” as atitudes mais insanas da população e deixa a juíza protagonista sem ter o que fazer, porque ela percebe que a miséria dessa nação hipotética (que pode ser qualquer uma daquelas que o Grande Sapo ameaçou comer no volume anterior, ou mesmo o Brasil, ou qualquer outra nação do mundo…) não está apenas na falta de dinheiro, comida, descumprimento ou descrédito das leis. Ela também está na cabeça das pessoas, que não se importam mais em cometer barbáries, uma vez que o senso de justiça foi deturpado. A lei existe, mas ninguém obedece mais porque a “outra opção” é mais lucrativa e garantirá dinheiro e comida na mesa, além do fato da impunidade ser uma possibilidade muito maior do que a justiça, ao menos para quem pode pagar por ela. É como voltar à Pré-História só que em uma era industrial e em pleno domínio do neoliberalismo.

O último bloco, Os Donos de Dixie, é o que possui alguns mínimos exageros, mas que são perdoáveis porque estão lá para dar sustentação ao discurso étnico, urbano, social. A primeira coisa que se destaca aí é a proliferação dos cães e diminuição dos humanos (Simão Sem-Tripas já tinha se espantado com isso na abertura do filme), como se fossem psicopompos de uma nação aqui diminuída a uma vila condenada. As tradições portuguesas, as homenagens ao cinema português (inúmeras delas) e o anacronismo histórico proposital vindo com a estranha e genial trilha sonora mostra uma colcha de retalhos de comportamentos e tempos, aludindo a preconceitos raciais, xenofobia, racismo e questões de classe, tudo em um bloco só, dividido em algumas sub-partes. Dixie, por exemplo, é tanto o guia para os humanos como, em outra leitura, o próprio povo, que passa de dono para dono (governante para governante / empresário para empresário), espera ser imediatamente amado e está disposto a se esquecer de tudo o que houve antes, deixando-se, no máximo, latir para o seu fantasma do passado, aquele que os velhos e os saudosos chamam de “bons tempos”.

Mais impiedoso e refletindo sobre relações humanas, cuidado, abandono e tragédias suburbanas, esta segunda parte das Mil e Uma Noites amadurece a ideia principal rapidamente, mas o faz sob uma elaborada estrutura histórica, técnica e plástica, o que certamente (e infelizmente) passará despercebido pelo público mais desatento, que deixará para trás a jocosidade como a “responsabilidade social” que é, a bem da verdade, o fio da meada de todo o filme, culminando em um engolfamento dessa responsabilidade a uma situação onde o “cão adotado” (os cidadãos, sob novo governo), contenta-se em comer um rato morto e assistir a uma festa típica regada a música e desfiles.

Miguel Gomes simplesmente destrói o cenário político português contemporâneo com este filme — e por tabela toda a estrutura de poder nos moldes das “Repúblicas de Bananas” — e nos deixa, ironicamente, esperando por um milagre, a vir no desfecho da trilogia, com O Encantado.

As Mil e Uma Noites: Volume 2 – O Desolado (Portugal, França, Alemanha, Suíça, 2015)
Direção: Miguel Gomes
Roteiro: Telmo Churro, Miguel Gomes, Mariana Ricardo
Elenco: Crista Alfaiate, João Pedro Bénard, Margarida Carpinteiro, Chico Chapas, Carloto Cotta, Luísa Cruz, Joana de Verona, Eduardo Frazão, Jing Jing Guo, Pedro Inês, Lucky, Adriano Luz
Duração: 135 min.

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