Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | As Horas (2002)

Crítica | As Horas (2002)

Três mulheres, em momentos distintos, colocam em ebulição as suas emoções mais profundas.

por Leonardo Campos
2,7K views

Uma trilha sonora hipnotizante, desempenhos dramáticos profundos, roteiro fortalecido por bons diálogos e um dos melhores momentos de Stephen Daldry na direção. É assim o desenvolvimento do drama As Horas, lançado em 2002, inspirado no romance homônimo de Michael Cunningham, narrativa que entrelaça em três perspectivas distintas de mulheres, situadas em diferentes épocas, todas ligadas pelo fio condutor de Mrs. Dalloway, uma das obras-primas da escritora Virginia Woolf. No eixo central das tramas, nós acompanhamos a própria Woolf, interpretada brilhantemente por Nicole Kidman, juntamente com Laura Brown (Julianne Moore) e Clarissa Vaughan (Meryl Streep), todas em momentos vigorosos de atuação, em entregas que compõem o melhor do cinema contemporâneo no que tange aos aspectos da atuação. Sem se entregar aos sentimentalismos excessivos, mas tecendo uma narrativa com personagens entrelaçadas, Stephen Daldry demonstra a sua habilidade notável em conectar as três mulheres de maneira coesa e emocionalmente ressonante, criando uma atmosfera introspectiva e contemplativa, nos permitindo refletir sobre as complexidades da existência humana por meio de um enredo lento, mas envolvente, direcionado aos espectadores sem pressa, instigados pelos mistérios dessas figuras ficcionais esféricas, guiadas pelo tom melancólico de David Hare, roteirista que conta com a montagem de Peter Boyle para assegurar que a sua composição dramática ganhe os contornos almejados.

Em seu desenvolvimento, As Horas é uma narrativa que explora temas profundos e delicados, talvez banalizados se tivessem caído nas mãos de realizadores sem a sensibilidade ideal para lidar com as questões acerca da identidade dos personagens em busca por sentido em suas respectivas vidas, numa trama que nos faz acompanhar os desdobramentos das escolhas e situações de cada uma das protagonistas, tudo em um único, angustiante e revelador dia da vida de cada uma dessas esféricas figuras ficcionais. Como mencionado, o filme entrelaça as histórias de três mulheres de épocas diferentes, unidas por Mrs. Dalloway, publicado em 1925 pela escritora britânica que é uma das personagens da trama. Novela conhecida por sua técnica de fluxo de consciência e pela exploração da subjetividade, a narrativa descreve um dia na vida de Clarissa Dalloway, revelando seus pensamentos íntimos e os de outras personagens. Na tradução cinematográfica, cada uma delas vive um dia crucial em suas vidas, determinante para os seus destinos. Virginia Woolf, em um profundo e emocionante desempenho dramático de Nicole Kidman, funciona como se fosse Deus, tecendo os desdobramentos das demais em sua escrita densa e tomada por muita insegurança.

O filme capta um momento de crise para a personagem. São os anos 1920, época em que ela luta contra a depressão e os primeiros sinais de sua esquizofrenia, enquanto tenta escrever Mrs. Dalloway. Cerceada, ela mora nos arredores de Londres e enfrenta dificuldades no relacionamento com seu marido, Leonard Woolf (Stephen Dillane), que está preocupado com sua saúde mental e controla cada um dos passos de seus dias mornos, desprovidos de emoções e amplificados pela falta de perspectiva diante dos distúrbios psicológicos. Laura Brown é a personagem de Los Angeles, nos anos 1950, Los Angeles. Dona de casa grávida que leva uma vida aparentemente perfeita, mas, no entanto, se sente profundamente insatisfeita e sufocada por seu papel de esposa e mãe. Enquanto o seu dia é radiografado, ela lê Mrs. Dalloway, sendo visivelmente influenciada pelo livro. Intensificada pelo desempenho dramático de Julianne Moore, Laura luta contra sentimentos de inadequação e contemplações suicidas. A terceira é Clarissa Vaughan, uma mulher dos anos 2000. Ela é uma editora de livros, nova-iorquina que prepara uma festa para seu amigo Richard (Ed Harris), um poeta que está morrendo em decorrência da AIDS, pois nega completamente qualquer tratamento.

Em muitos instantes, Richard se refere a Clarissa como “Mrs. Dalloway”, destacando o paralelismo com o personagem do livro, em falas que confrontam constantemente a amiga que precisa se libertar da relação que ambos possuem para que a sua jornada na existência terrena ainda consiga colecionar momentos de alguma ternura. Clarissa lida com uma série de conflitos internos sobre o amor, a perda e a passagem do tempo. Com um desenvolvimento não-linear, alternando entre as três histórias e mostrando como elas se entrelaçam e refletem uma na outra, mesmo estando separadas por tempo e espaço, As Horas é um filme de diversas camadas, debates ainda muito atuais e construção estética e dramática cuidadosa com o espectador. É um marco para quem vos escreve. Ao tecer essas linhas, por exemplo, sou acompanhado pela trilha sonora da narrativa, assinada com maestria por Phillip Glass em um de seus momentos de composição mais inspirados. Na trama, um estudo sobre escolhas que realizamos e como as suas consequências se estabelecem em nossas jornadas, cada protagonista, em seu respectivo tempo, lida com uma forma de opressão ou desgosto pessoal, em um drama que retrata cuidadosamente a depressão (Virginia Woolf), a feminilidade e os papeis sociais previstos para as mulheres numa opressiva sociedade tradicional (Laura Brown), bem como a homossexualidade e as relações Clarissa Vaughan com o seu próprio passado, insistente ainda no presente.

Aqui, o texto não apenas adapta um romance premiado com sensibilidade e precisão, mas também oferece uma meditação profunda sobre as conquistas e tragédias da vida humana. Stephen Daldry conseguiu criar uma obra que ressoa profundamente com seu público, convidando à reflexão e à empatia. Seu estilo é marcado por diálogos afiados, cenas intensas e um olhar crítico sobre as complexidades do mundo contemporâneo. Hare não apenas entretém, mas nos coloca diante de personagens multifacetados e densos. A habilidade de Hare em utilizar a linguagem de forma precisa e impactante é outra faceta central de seu estilo de escrita. Seus diálogos são afiados e realistas, capturando a essência das interações humanas com uma autenticidade impressionante, aqui, entrelaçando diferentes linhas temporais e perspectivas para criar um mosaico narrativo complexo, devidamente organizado pela eficiente edição de Peter Boyle. Em seus diálogos há uma singular profundidade psicológica, bem como um ousado e funcional virtuosismo linguístico.

Sobre os seus elementos estéticos, As Horas é um filme coeso e cuidadoso. A direção de fotografia assinada por Seamus McGarvey consegue captar a delicadeza do que é narrado, utilizando luz natural e uma paleta de cores expressiva para diferenciar as épocas e estados emocionais das personagens. As escolhas visuais apoiam as transições entre as três linhas temporais, criando uma narrativa visual fluida e elegante, reforçada pela já mencionada trilha sonora hipnótica de Philip Glass, responsável por compor uma textura que se apresenta como um dos elementos mais memoráveis do filme. Seu estilo minimalista e repetitivo cria uma atmosfera hipnótica e introspectiva, que intensifica as emoções interiores das personagens. A música de Glass é crucial para a criação do tom meditativo e melancólico do filme. O design de produção é meticulosamente detalhado, refletindo com autenticidade os diferentes períodos e espaços em que as histórias se desenrolam. A recriação da Londres de Woolf, os Estados Unidos suburbano dos anos 1950 e a Nova Iorque contemporânea são todas realizadas com um olho crítico para a autenticidade histórica e emocional. Assinado por Maria Djukorvic, o setor gerencia de maneira competente a cenografia, a maquiagem e a direção de arte, essa última, uma ramificação que traz um interessante uso dos adereços para a representação das emoções dos personagens.

É um retrato cinematográfico da resiliência, uma narrativa que encontra beleza naquilo que contemplamos e entendemos como dor.

As Horas (The Hours) – EUA | 2002
Direção: Stephen Daldry
Roteiro: David Hare (baseado no livro homônimo de Michael Cunningham)
Elenco: Nicole Kidman, Julianne Moore, Meryl Streep, Ed Harris, Claire Danes, Stephen Dillane , Miranda Richardson , Toni Collette , Allison Janney , Jeff Daniels
Duração: 119 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais