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Crítica | As Flores do Mal, de Charles Baudelaire

Obra-prima da poesia moderna e simbolista.

por Leonardo Campos
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Uma composição poética que pinta cenas da vida parisiense e insere a cidade como tema, numa publicação que é considerada o preâmbulo do simbolismo literário e a inauguração da modernidade poética. Assim é o clássico As Flores do Mal, de Charles Baudelaire, uma das obras-primas do escritor “maldito”, alvejado pelo público da época, taxativo ao recepcionar os seus versos repletos de trechos proibidos, impactantes, ousados, em linhas gerais, polêmicos para a época. Sinestésicos, os poemas em questão apresentam o amor por uma via romantizada, com passagens que abordam o lado carnal e complexo deste sentimento, tendo fortes demarcações de sadismo e melancolia, num tratamento de extrema crueza de todos os assuntos delineados por meio do prosaísmo baudeleriano. Publicado em 1857, as malditas flores do francês traçavam fortes críticas ao avançado processo de modernização que acometia o mundo, em especial, o continente europeu, num panorama de exposições sobre amor, morte, inquietude, o tédio que nos consome em determinados momentos, bem como a frenética passagem do tempo, numa era de reação intelectual contra a racionalização de todas as coisas.

A intuição, neste contexto histórico, ia de encontro ao que era lógico, o subjetivismo buscava espaço diante da circulação do racionalismo, num período em que os artistas e pensadores começavam a duvidar do discurso científico como a única via de explicação para todos os fenômenos estabelecidos para a humanidade. Limitada, a ciência agora era tratada como incapaz de ditar todas as regras e contemplar o manancial de respostas buscadas diante do painel de questionamentos cada vez mais frequente, numa composição poética de múltiplas interpretações, ainda muito recorrente na contemporaneidade, haja vista a sua pluralidade de sentidos, expostos por meio de suntuosos versos alexandrinos, isto é, dois meio-versos de seis silabas métricas cada, tendo a aplicação tônica na sexta e na décima segunda sílaba poética, um retorno ao clássico deixado de lado em prol dos padrões adotados por nomes como Victor Hugo.

O que encontramos em As Flores do Mal é um feixe de poesias sugestivas e sensitivas que versam sobre experiências individualizadas do eu-lírico, numa abordagem que prioriza o poder da sugestão, na adoção de um tom vago e misterioso. Charles Baudelaire faz uma espécie de conversão da atividade poética de seu lugar costumeiramente emocional para uma travessia intelectualizada e com foco cosmopolita.  Em seus poemas, o francês retrata tudo aquilo que pode ser considerado insuportável, detestável, numa descrição da figura humana como algo repulsivo, tendo a natureza como a origem para todos os nossos males. A cada verso, nos deparamos com uma forte exposição de imagens alucinógenas, preocupadas em retratar os tópicos temáticos já mencionados por aqui, tais como tédio, melancolia, coisas repugnantes e sensualmente sórdidas, numa observação da solidão existencial da humanidade. É intenso, complexo, incômodo e nebuloso: esta é a experiência de leitura em As Flores do Mal.

A sensibilidade humana é descortinada nos versos que refletem a nossa mortalidade, um mundo de caos regido por forças que escapam de nosso controle total, numa existência que nos impede de ter respostas para tudo. O discurso científico, também já mencionado, em voga na época, não possui a destreza de responder aos anseios em sua totalidade, numa viagem poética que tem também como ângulo iluminado, os malefícios das revoluções industriais e suas ressonâncias, em especial, a mudança nas relações econômicas, sociais e comportamentais. As cidades, cada vez mais extensas e lotadas, a humanidade obcecada pelo poder da moeda, as lutas e os movimentos contra as opressões do capitalismo numa ramificação cada vez mais profunda e um sentimento de desprezo em relação ao processo de projeção da burguesia estão presentes nas passagens enigmáticas desta publicação que enfrentou sérios problemas de censura e ficou quase 100 anos recebendo cortes e restrições de circulação.

Na estrutura poética de As Flores do Mal, Baudelaire parece recuperar traços do idealismo romântico e produzir dentro de uma modelagem estética que se baseia nas relações rítmicas das palavras, transformando a arte da poesia numa viagem por abstrações que tem na palavra o seu símbolo mais importante. Ao longo de seus 100 poemas divididos em seções, a obra possui o que a crítica literária chamou de ciclos: Tédio e Ideal, Quadros Parisienses, O Vinho, As Flores do Mal, Revolta e A Morte, trajetórias de um eu-lírico que discursa sobre elementos vagos, tomados por uma atmosfera nebulosa, com perspectiva pessimista. Baudelaire, ao ter se negado o ingresso em carreira universitária, teve na vida a sua escola, inspiração com base em observações detalhistas do cotidiano, tendo a pintura como uma de suas vias de maior conexão, uma relação de amor declarada em seus poemas e demais discursos registrados nos compêndios da história literária da metade ao final do século XIX.

Em Os Faróis, por exemplo, ele traz Goya, Leonardo Da Vinci, Delacroix, dentre outros, numa demonstração fascinante da relação entre poesia e artes plásticas, algo constante em sua obra de forma geral. Atacada e acusada de insultar a moral e os bons costumes, As Flores do Mal é uma publicação que possui diversas passagens formidáveis que escapam do nosso escopo de análise por questões editoriais, mas deixo aqui um olhar para dois momentos preponderantes para compressão do que chamo de “tom” desta obra-prima: “Uma Carniça”, poema que destaca a dualidade entre forma e matéria, numa elaboração curiosa do conceito de sublime e “Uma Passante”, composição onde Baudelaire expressa o pânico ao passar pelas ruas da cidade, um lugar de frieza e impessoalidade, tudo isso num poema que versa sobre outro tema comum do livro, a ideia de multidão. No geral, As Flores do Mal é o tipo de produção poética que não deixa o leitor indiferente, material que retrata os seus temas com possibilidades associativas de interpretação em contextos históricos distintos, publicação que merece todo o cuidado que tem da crítica literária como um clássico bastante representativo da literatura ocidental.

As Flores do Mal (Le Fleurs du Mal/França, 1857)
Autor: Charles Baudelaire
Publicação original: Les Épaves
Editora: Martin Claret
Tradução: Mário Laranjeira
Páginas: 279

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