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Crítica | As Filhas Do Fogo (1978)

Bruxas, fantasmas e complexos de édipo mal resolvidos.

por Rafael Lima
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Quando falamos em cinema de terror feito no Brasil, a maioria das pessoas acredita que o gênero se limitou a filmografia do diretor José Mojica Marins e seu mais conhecido personagem, o Zé Do Caixão, com seus filmes de estética Trash e caráter transgressivo. Embora a contribuição de Mojica para o nosso cinema e para o gênero seja enorme, o século 21 viu muitos pesquisadores como Laura Cánepa, por exemplo, explorarem a história do cinema de terror brasileiro e relembrarem que outros cineastas se aventuraram mais de uma vez no terror, gerando obras com estéticas e propostas muito diferentes daquelas adotadas Mojica, mas que ainda se comunicavam com as diversas realidades brasileiras. Podemos citar nomes como John Doo, Ivan Cardoso, Carlos Hugo Christensen, e Walter Hugo Khouri, que comandou As Filhas Do Fogo, objeto desta resenha. 

Na trama, Ana (Rosina Malbouisson) é uma garota que viaja até a serra para visitar sua namorada Diana (Paola Morra), que vive em uma isolada casa de campo no meio de um bosque. Logo, as duas mulheres conhecem a estranha Dagmar (Karin Rodrigues), a vizinha mais próxima, que alega ser uma médium e tem um passado misterioso com Silvia (Selma Egrei), a falecida mãe de Diana, que cometeu suicídio naquele mesmo bosque, anos antes. Ao mesmo tempo que uma série de coisas estranhas começa a acontecer, um forasteiro (Serafim Gonzalez) aparece nas proximidades pedindo comida e bebida.

Escrito e dirigido por Walter Hugo Khouri, As Filhas Do Fogo é um thriller sobrenatural que tem uma atmosfera muito bem construída, onde os olhares dos personagens dizem muito mais do que qualquer linha de diálogo. Assim como na incursão anterior de Khouri no gênero, o curioso O Anjo Da Noite (1974), esta produção de 1978 é bastante contemplativa, trabalhando com forte simbolismo, resultando em um filme que parece dialogar muito mais com o abstrato do que com o concreto, lembrando um pouco a atmosfera das obras de Edgar Allan Poe (com o desconto da linguagem cinematográfica, é claro). Gravado na Serra Gaúcha, a fotografia se utiliza muito bem das paisagens naturais, que conseguem ser profundamente belas e sufocantes.

A direção de arte é simples, mas competente, especialmente no que diz respeito às construção dos cenários. A casa de Diana, por exemplo, expõe a opulência e a herança europeia da garota de forma econômica, mas precisa, enquanto a casa de Dagmar mostra-se um ambiente mais simples, com mostras sutis do interesse da mulher pelo oculto e pelo sobrenatural. A trilha sonora composta por Rogério Duprat consegue transmitir a atmosfera do filme de maneira igualmente sutil, sem nunca soar intrusiva demais, embora também não se destaque.

O roteiro trabalha com temas como espiritismo, parapsicologia e bruxaria de forma discreta, mas eficiente. Curiosamente, Khouri também insere toques fortemente freudianos em sua narrativa.  A protagonista Diana parece nutrir grande desprezo pela figura paterna (que nunca aparece e a quem ela se refere como sendo um vagabundo) e possui uma imagem idealizada da mãe falecida, com algumas fortes conotações edípicas. Não parece ser coincidência que a sua foto favorita da mãe é de quando a mulher estava grávida. O filme também claramente pinta a figura masculina como sendo desprezível e traiçoeira, já que além do pai de Diana, o único outro personagem masculino do filme é o andarilho, que não parece ter nenhuma virtude, e paga bem caro por desafiar o poder feminino. Entretanto, todos os personagens do filme parecem desconectados e alienados de certa forma, isolados em seu próprio mundo, excetuando Mariana (Maria Rosa), a empregada que viveu a vida inteira na casa de campo, e que acaba se envolvendo com o andarilho.

Embora As Filhas Do Fogo comece justamente com uma sequência de nudez e deixe bem claro a homossexualidade do casal protagonista, a orientação sexual de Diana e Ana nunca é tratada de forma apelativa e fetichista, e sim lírica, além de ter função narrativa ao criar mais um paralelo entre Diana e sua mãe, que também mantinha uma relação lésbica com a enigmática Dagmar. Infelizmente, o péssimo trabalho de dublagem atrapalha muito o desempenho da dupla protagonista. Vamos lembrar que, por muitos anos, em boa parte dos filmes brasileiros, os diálogos eram dublados ao invés de captados diretamente. Nem sempre essa dublagem era boa, como é o caso aqui, o que tira um pouco o público da imersão, mas nada que não se possa relevar. Mesmo que não diga uma única palavra o filme inteiro, Selma Egrei é a melhor em cena, com a sua fantasmagórica Silvia, soando incômoda e ameaçadora com seus olhões azuis e sorriso misterioso. Vale comentar também o trabalho de Serafim Gonzales como o irônico Andarilho, que concede o grau certo de mistério e ironia ao seu personagem, além de um certo ar patético.

Pecando apenas por um final que é um pouco metafórico demais para o meu gosto, As Filhas Do Fogo é um interessante filme de terror nacional com uma atmosfera muito bem construída, mas que, talvez, não seja para todos os gostos, pelo seu ritmo acertadamente lento. Ainda assim, é uma experiência fílmica intrigante e que merece ser mais conhecida.

As Filhas Do Fogo – Brasil, 1978
Direção: Walter Hugo Khouri
Roteiro: Walter Hugo Khouri
Elenco: Paola Morra, Karin Rodrigues, Rosina Malbouisson, Maria Rosa, Serafim Gonzalez, Selma Egrei, Maria Husemann, Helmut Hosse
Duração: 98 Minutos

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