Ao final de As Belezas de Garden City temos o seguinte aviso: “Texto extraído da descrição do futuro de Milwaukee escrita em uma carta de Victor Berger, em 1895“. O verdadeiro movimento para o que conhecemos hoje como a “teoria da cidade-jardim” surgiu três anos depois, no Reino Unido, e é esta teoria que o professor e cineasta Ben Balcom cerca ao falar de um novo método de planejamento urbano, com comunidades independentes e cercadas por cinturões verdes, surgidas após um apocalipse, uma catástrofe ou uma revolução.
O filme indica um fluxo de existência inquietante, mesmo nesse suposto Paraíso criado após um cataclismo. Tal inquietação no tráfego me fez lembrar basicamente da única cena que eu não gosto em Solaris (1972), mas cuja função de observação do espaço através de uma viagem de carro (que poderia bem ser uma nave ou outro veículo muito à frente de nosso tempo) reafirma o reboliço interno causado por experiências complexas no mundo exterior. O mundo se ergue, depois de uma catástrofe. As coisas podem até ser muito melhores do que eram. Mas progressivamente essa “consequente beleza” deixa de impressionar, de agradar de trazer aquilo que se imagina que teríamos com ela: a felicidade.
Os planos de contexto simbolizando aglomerações urbanas, como fotografias vistas de satélites, são criados aqui filmando-se manchas ou alterações no asfalto, o que me pareceu interessante no começo, mas depois… nem tanto. É nesse espaço em novo crescimento e cheio de belezas que se estabeleceu a nova sociedade, aparentemente uma reconstrução da ordem capitalista… não sem uma certa moralidade julgadora (especialmente quando traz à memória o que era Chicago e Nova York), mas com uma estrutura de forças trabalhistas, organização urbana, social e de bem-estar que entra no território da utopia. E por fantástica ironia, conclui que para o nosso espírito, nem isso basta.
As Belezas de Garden City (Garden City Beautiful) — EUA, 2019
Direção: Ben Balcom
Roteiro: Ben Balcom
Duração: 10 min.
.
Rio Submerso
É quase uma ironia a diferença da proposta de Rio Submerso para outro filme que também fala sobre a interação entre pessoas e espaço urbano: As Belezas de Garden City. No curta brasileiro, a beleza é deixada de lado e algo diferente toma o controle da situação. O crescimento urbano desordenado é colocado em cena. A péssima ou inexistente política de planejamento e acessibilidade é escancarada. Assim como o saneamento e outros problemas que sabemos existir como cartilha básica nos países da periferia do capitalismo, mas que vistos em nosso quintal, acabam tornando a coisa verdadeiramente desesperadora.
O que Rio Submerso faz é estabelecer uma relação da cidade do Rio de Janeiro com a água, tanto no bom, quanto no mal sentido. As praias nos dias de divertimento e nos dias de ressaca. A chuva nos dias quentes e também quando acabam inundando a cidade. É o tipo de ocorrência a que os brasileiros já estão acostumados, especialmente nas regiões onde existe uma grande quantidade de chuva concentrada num certo período do ano (no caso do Rio, o verão).
A problemática levantada aqui não é a presença da água (da chuva ou do mar) na cidade. Mas a forma como um anunciado “grande crescimento” — e os diretores fazem questão de ironizar imageticamente essa frase — não considera a natureza em volta e nem o comportamento das águas em uma cidade… construída ao redor e entre águas. Chega a ser um contrassenso urbano, mas esta é a realidade, e infelizmente, não apenas no Rio de Janeiro. A sensação de submersão, pelo menos para mim, também tem um caráter crítico aqui, e apesar da simplicidade e interrupção rápida de uma boa premissa do filme, já na reta final, o recado consegue ser dado de maneira inteligente e reflexiva.
Rio Submerso (Brasil, 2019)
Direção: Ivan Ignacio, Lucas Bártolo, Beatriz Leonardo, Luís Felipe
Roteiro: Ivan Ignacio, Lucas Bártolo, Beatriz Leonardo, Luís Felipe (com imagens e áudios de arquivo)
Duração: 7 min.