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Crítica | As Aventuras de Pi

Uma aventura religiosa enquanto espetáculo poético.

por César Barzine
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No início de As Aventuras de Pi, este diz a um escritor sem nome — que procura nos relatos de Pi uma inspiração literária — que o fará acreditar em Deus por meio da  sua história. A narrativa de Pi não envolve argumentos ou provas, nem o sobrenatural ou algum tipo de proselitismo, então, onde está Deus? A aventura vivida por nosso protagonista acaba respondendo que ele está em todo lugar. E por que acreditar nele? Pi responde com outra pergunta: e por que não acreditar? Mesmo com esse caráter religioso, o filme continua sendo um trabalho de aventura, porém, uma aventura existencial. E é em toda essa amálgama que encontramos a brilhante singularidade do longa. Trata-se da aventura de um homem desbravando a natureza, mas completamente na contramão do entretenimento hollywoodiano desse tipo; é uma obra quase sempre imersa em intensos efeitos visuais, porém desconectada da pirotecnia artificial em prol de uma poesia que contempla a natureza; e, como já dito, um filme religioso, mas cuja religiosidade está em tudo a nossa volta sem depender da presença constante de signos propriamente religiosos.

Pi explora a natureza ao ser explorado por ela. É nos diversos trancos e barrancos pelos quais  o jovem desnorteado passa que ele cria uma relação de intimidade com essa natureza que beira a  transcendência. E é exatamente aí que entra Deus, do qual só se expressa a partir de tudo que já nos é dado: o clima, os animais, os lugares etc. O filme apresenta uma concepção holística de mundo, em que há um todo que se autoconecta com o sagrado. Em certo momento que Pi está no barco, ele agradece a Deus em suplícios por ter se manifestado em forma de peixe para ele comer. Assim, o protagonista verbaliza a onipresença divina, mas é justamente nos momentos imagéticos e de intenso encanto que vemos Deus em sua potência — seja na fofura dos suricatos, na beleza da ilha carnívora, no estupendo salto de uma baleia ou nos momentos angustiantes de tempestade.

Alguns desses momentos são expressões perfeitas daquilo que Kant denominou, na estética, como sublime: que é uma categoria de fascínio visual do homem diante de algo grandioso da natureza. O caso do enorme salto da baleia seria um exemplo de sublime dinâmico, em que o homem sente certo tremor perante algo espetacular e intimidador. Enquanto os simples planos que capturam a horizontalidade de Pi em meio ao mar são casos do sublime matemático, onde há uma profunda dimensão em torno do indivíduo, dando a impressão de vastidão. O sublime produz o efeito de pequenez humana e, ao mesmo tempo, entrega uma grandeza na alma ao nos conectarmos com o nosso meio. E é isso que tanto Pi quanto o público sentem e assimilam: uma apreciação do divino por meio  de uma força triunfante e tensa.

Essa meditação do divino através  da natureza como um todo holístico também se faz presente no trabalho de Roberto Rossellini, mas de maneira mais sutil e menos plástica. O visual preto-e-branco e os ambientes rústicos atestam essa abordagem nos filmes Viagem à Itália, Francisco, o Arauto de Deus e Stromboli. Enquanto que no segundo há uma noção mais minuciosa da natureza, o terceiro se aproxima do sublime dinâmico, testemunhando uma manifestação direta de Deus; no entanto, ainda assim bem distante do tratamento esteticamente virtuosista de As Aventuras de Pi. No filme de Ang Lee, há a necessidade do espetáculo, da grandiosidade não somente da ação, mas também do visual. A ideia de Deus e do filme como um “quase blockbuster” atraente ao grande público necessitam desse deslumbramento, marcando um encontro entre a técnica e o espírito.

Em contraponto a boa parte das demais produções dominadas pelo espetáculo técnico, As Aventuras de Pi invoca seus maneirismos a partir  da contemplação — e não de um dinamismo frenético — e da natureza como objeto — em vez de  super-heróis, cidades sendo destruídas ou magia. É por esse tipo de exposição formal que perpassa todo o segundo ato do filme, quando Pi encontra-se deslocado em meio ao oceano. A fotografia é totalmente estonteante, com uma belíssima apreciação de todo o horizonte ao redor, realçando a plasticidade e a infinitude do céu e do mar. Já os efeitos visuais atingem um enorme destaque em momentos bem pontuais ao apresentar coisas menos triviais, como a já citada baleia e a ilha carnívora. Chama a atenção também o uso de dissolve, principalmente em instantes do primeiro ato envolvendo piscinas e mergulhos. Essas transições entre os planos causam uma sensação de fluidez bastante sintomática com as noções místicas presentes no longa.

Há em diversos momentos da história um confronto com a visão espiritualizada de Pi, um desses casos é o de seu pai. Este afirma que Deus não existe e, após ver seu filho perto do tigre Richard Parker, faz ele presenciar o animal devorando um outro para demonstrar a brutalidade daquele felino que, segundo ele, “não é seu amigo”. É um ato pautado em uma posição materialista e fria das coisas. Mas, com o passar dos anos, Pi acaba tornando-se justamente “amigo” de Parker, o que é indicado na belíssima passagem em que o jovem desiste de matá-lo, capturando de forma extremamente comovente em um único plano o rosto do tigre, no qual vemos, naquelas feições, a expressão de “algo a mais” na essência do animal. No entanto, tudo isso desmorona quando Richard Parker contraria as expectativas de Pi e segue seu rumo sozinho, sem demonstrar qualquer consideração pelo rapaz. É o retorno da postura fria e materialista defendida pelo seu pai e já exemplificada na situação em que o tigre come um outro animal. 

O mesmo vale em relação ao ceticismo do escritor e de dois jornalistas enviados para coletarem um relato da sobrevivência de Pi, mas desta vez abrindo uma reflexão acerca da verdade. Há duas verdades em todo o filme: uma espiritualizada e outra desencantada. Os jornalistas rejeitam a versão dos fatos relatada por Pi (a apresentada no filme) por julgarem extraordinária demais. Daí Pi inventa uma outra versão, agora mais realista e, ao mesmo tempo, simbólica, tomando cada elemento dessa  nova narrativa um signo para aquilo que é incrível na outra — que é, de fato, a real. Diante dessas duas perspectivas, Pi pergunta ao escritor qual ele prefere, e ele responde que é a espiritualizada — isto é, a pautada no maravilhoso, naquilo que é menos crível para a razão. Pi conclui que é a mesma coisa com Deus; que o fantástico, o belo e o maravilhoso (parafraseando Pascal) possuem as suas razões para além da razão.

Life of Pi (EUA, 2012)
Direção: Ang Lee
Roteiro: David Magee, Yann Martel (romance)
Elenco: Suraj Sharma, Irrfan Khan, Ayush Tandon, Gautam Belur, Adil Hussain, Tabu, Ayan Khan, Mohd Abbas Khaleeli, Vibish Sivakumar, Rafe Spall, Gérard Depardieu, James Saito, Jun Naito, Andrea Di Stefano, Shravanthi Sainath, Elie Alouf
Duração: 127 minutos.

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