A história que a cineasta tunisiana Kaouther Ben Hania tem para contar em As 4 Filhas de Olfa é impressionante e terrível, algo que desvela as garras insidiosas do fanatismo religioso e escancara o relacionamento complicado e até condenável de uma mãe com suas quatro filhas, duas delas que acabaram fugindo de casa para fazer parte do Estado Islâmico. E é por isso que eu não consigo entender o porquê das escolhas narrativas da diretora e roteirista para guiar o espectador pelos meandros dessa tragédia moderna de arrepiar os cabelos da nuca. No lugar de prezar pelo básico bem feito, ela preferiu um caminho repleto de embelezamentos que cria camadas artificiais a horrores que não precisavam de absolutamente nada a mais para chamarem atenção.
Aliás, chega a ser curioso e inusitado que, se o espectador não ler uma sinopse antes de embarcar na experiência audiovisual, somente será realmente possível descobrir o que exatamente aconteceu com Rahma e Ghofrane, as duas filhas mais velhas de Olfa, no terço final da projeção, o que cria um suspense completamente desnecessário que, no final das contas, esvazia o poder da narrativa central e, pior, apressa sua resolução, quase como se, de repente, a diretora tivesse clicado no fast forward. Afinal, o ponto nodal do documentário é justamente o destino das duas jovens que, durante a maior parte do longa, são mencionadas como “desaparecidas”, com a família remanescente, mãe e as duas filhas mais novas, sofrendo com uma mistura de saudade, inconformismo e remorso.
No entanto, esse nem é o maior dos problemas. O conceito do documentário em si é problemático. Ou melhor, a execução do conceito é atabalhoada, se eu quiser ser justo, pois, como disse, no lugar de usar Olfa, a mãe, e Eya e Tayssir, suas duas filhas mais novas, como conduítes para uma narrativa destruidora, Hania quis inovar e trazer elementos metalinguísticos para sua obra, que se torna um relato sobre o périplo de Olfa e suas filhas ao mesmo tempo em que é, também, um making of de recriações de cenas da vida dessa família com o uso de três atrizes para viverem a própria Olfa em cenas mais difíceis para a personagem real e as duas filhas que se radicalizaram. É, sem dúvida alguma, uma ideia interessante e atraente, que poderia render bons momentos, mas tudo o que a diretora e roteirista consegue é criar confusão e perder por diversas vezes o fio da meada da história principal.
O objetivo era certamente o de criar espaço para reflexão e, acima de tudo, confrontar Olfa, Eya e Tayssir com “novas encarnações” de Rahma e Ghofrane e, ainda que isso por vezes ocorra, tenho minhas dúvidas se o preço que esse artifício mal executado cobra valeu o esforço e, mais ainda, se isso não ocorreria de qualquer forma sem essa tentativa de inovação. Ao acrescentar supostas camadas à história, Hania faz seu documentário descosturar-se na abordagem dos temas centrais, primeiro lidando com a maneira rígida com que Olfa criou suas filhas e, depois, o que levou Rahma e Ghofrane à radicalizão. No entanto, com todos os floreios, nada é realmente desenvolvido a contento, com as entrevistas e as sequências em que as irmãs reais interagem com as “irmãs falsas” acrescentando pouco mais do que uma infinidade de diálogos vazios que fazem a progressão se arrastar absurdamente.
Somente um esforço grande de concentração leva o espectador a extrair os fiapos aterradoras da narrativa e montar mentalmente uma história coesa, sem “enchimentos” que parecem existir de maneira a evitar que a obra chegasse a ser um longa metragem, pois não há material suficiente, da forma com que Hania conta a história, para preencher mais do que uma duração acanhada de curta metragem. E é uma pena, pois a tragédia da família de Olfa deve se repetir muito por aí e seria importante que o documentário servisse de alerta eficaz contra a perniciosidade da lavagem cerebral religiosa. Infelizmente, porém, o que fica é a lembrança de um filme que carece de coesão e que tenta inventar moda, retirando muito do impacto que a história em si já muito claramente carrega em seu âmago.
As 4 filhas de Olfa (Les filles d’Olfa – França/Alemanha/Tunísia/Arábia Saudita, 2023)
Direção: Kaouther Ben Hania
Roteiro: Kaouther Ben Hania
Elenco: Hend Sabri, Olfa Hamrouni, Eya Chikhaoui, Tayssir Chikhaoui, Nour Karoui, Ichraq Matar, Majd Mastoura
Duração: 107 min.