Dirigido e escrito por Matthew Vaughn, cineasta conhecido por paródias, sátiras e obras subversivas como Stardust, Kick-Ass e a franquia Kingsman, o filme Argylle tem uma trama de espionagem conceitualmente inusitada, interessante e relativamente promissora. Uma espécie de híbrido entre Adaptação (2002) e Kingsman: Serviço Secreto, a produção mistura realidade e ficção quando uma escritora chamada Elly Conway (Bryce Dallas Howard) percebe que seus livros de espionagem estão refletindo eventos do mundo real. Seus personagens das obras literárias, chamados de Argylle (Henry Cavill), Wyatt (John Cena), LaGrange (Dua Lipa), entre outros, ganham contrapartes na vida real quando Elly se vê numa conspiração internacional com um verdadeiro espião chamado Aidan (Sam Rockwell).
Existe um pouquinho de metalinguagem espalhada no roteiro, seja para a divisão entre “mundos” da obra, seja para os seus diversos comentários sobre o gênero. De modo geral, vemos pouco do universo literário criado por Elly, com o personagem titular e seus comparsas raramente aparecendo ao longo da extensa minutagem do filme. Dua Lipa e John Cena têm uma ou duas cenas, enquanto Cavill é relegado à pequenas participações alucinógenas da protagonista. O primeiro defeito da obra começa por aí, uma vez que o mundo de Argylle parece substancialmente mais divertido e carismático do que a narrativa de Elly e Aidan.
Começando pelo bloco literário, Vaughn empresta as mesmas características de Kingsman em seu estilo caótico, imaturo e subversivo de uma ação à la 007 com mais comédia e muita galhofa em tela. Alguns cacoetes relacionados ao constante exagero do cineasta atrapalham, mas até que o núcleo funciona dentro do pastiche da coisa toda, muito por conta do carisma de Cavill e Cena, dois brutamontes que vendem o entretenimento despretensioso para a audiência. Infelizmente, logo descobrimos que os personagens são ficcionais e apartamos na vida de Elly.
De início, a ideia é curiosa. O roteiro parece encaminhar a narrativa para algo que mistura uma trama de espionagem com bloqueio criativo, fazendo principalmente uma comédia de contrastes que se aproveita da atuação espirituosa e meio arrogante de Rockwell. Existe uma brincadeira com metalinguagem e muita comédia corporal promissora em uma sequência no trem, mas a obra vai ficando gradualmente e desnecessariamente exagerada, sem sentido e cansativa à medida que Elly descobre mais segredos e reviravoltas.
É como assistir uma produção tão orgulhosa de sua autoconsciência, de suas sacadinhas subversivas e sua ideia “original” que o filme inteiro vira uma piada ao se tornar exatamente o que tenta caçoar, cheio de clichês desarranjados com vilões genéricos (Bryan Cranston é particularmente desperdiçado em uma caricatura ridícula); twists convenientes e pouco criativos; e resoluções tiradas da cartola que são minuciosamente explicadas como se fossem brilhantes. Depois que o universo literário desaparece, notamos que todo esse samba para ser diferentão não é nada mais do que o revestimento de um protótipo e arquetípico filme de espionagem que tenta se inspirar em obras melhores, sejam em franquias sérias como Bourne ou paródias como Austin Powers.
Inclusive, Vaughn nunca encontra um equilíbrio, ficando num limiar entre se levar a sério demais ou ser muito bobo. O que acaba acontecendo é que nenhum tom funciona, já que o drama é fraco, o suspense é inexistente e o perigo é piada, enquanto o lado despretensioso da produção não tem charme, elegância ou inteligência para nos fazer rir. Faltou às vezes aquele sarcasmo britânico de Kingsman ou então mais inventividade com o humor visual, considerando o quanto a ação é irregular.
Em diversos momentos os efeitos especiais deixam a desejar ou então a edição é confusa, mas é principalmente o trabalho ruim de Vaughn por trás das câmeras que nos entregam algumas das set-pieces mais constrangedoras que veremos no ano (talvez na década…). A mistura entre os “mundos” acaba anulando a fluidez de algumas coreografias e quando as cenas de ação são pensadas para Elly, o cineasta erra a mão em excessos e estruturas cômicas cansativas. Isso tudo porque nem cheguei a reclamar do terrível processo de investigação da narrativa, da falta de senso de escala por mais que a obra tente se vender como uma conspiração global, das participações apáticas de coadjuvantes famosos, de corpos que viram bonecos de plásticos durante lutas… vocês entenderam a ideia. É uma bagunça.
Querendo ser muito esperto em seu conceito inusitado, Argylle acaba pecando por querer se explicar demais, por se perder em seus exageros e, principalmente, por não encontrar sua essência. Vaughn nunca delimita o tipo de filme que quer produzir, porque às vezes estamos num pastiche, depois numa história romântica, de repente é frívolo e logo depois quer fazer a audiência chorar. No final, até descobrimos que estamos numa franquia. É uma pena, porque se Vaughn não estivesse tão focado em fazer uma produção inchada, longa e que quer ser mais inteligente do que realmente é, existe potencial aqui para uma paródia extremamente simples e agradável. Talvez, só talvez, seria melhor que fosse apenas um pastiche de espionagem com Henry Cavill e John Cena. Me soa mais divertido do que essa confusão pretensiosa que acabei vendo.
Argylle: O Superespião (Argylle) – EUA, 01 de fevereiro de 2024
Direção: Matthew Vaughn
Roteiro: Jason Fuchs
Elenco: Bryce Dallas Howard, Sam Rockwell, Bryan Cranston, Catherine O’Hara, Henry Cavill, Sofia Boutella, Dua Lipa, Ariana DeBose, John Cena, Samuel L. Jackson
Duração: 139 min.