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Crítica | Aqui (Here, 2014)

Um local, muitos milênios, algumas páginas.

por Luiz Santiago
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Aqui é um marco dos quadrinhos dos Estados Unidos; uma história que começou muito simples, sem muita pretensão. Em 1989, na edição de estreia da revista Raw Vol.2, o desenhista Richard McGuire publicou uma historinha de apenas seis páginas mostrando diversas situações na sala de uma casa através de décadas, séculos e milênios. Essencialmente, é uma premissa simples, mas a engenhosidade de narrar algo coeso e impactante para mostrar como a humanidade, o tempo e as diferentes necessidades moldaram um determinado espaço fizeram desse quadrinho um merecido chamariz de aplausos. Em 2014, o autor expandiu a história para algo ainda mais impressionante, agora explorando cores e dando maior profundidade às narrativas dentro e fora do cômodo protagonista.    

Embora este não seja um quadrinho mudo, a maioria das páginas são, de fato, para contemplação e análise visual, considerando a passagem de milhares de anos e tudo o que acontece no canto de um cômodo, desde antes dos dinossauros até um futuro distante. Os poucos quadros de texto adicionam uma camada emotiva à narrativa, mas a grande sacada de Aqui é a excelente exploração do autor sobre o tempo e o espaço, num olhar tão diferente e tão dinâmico, que, em tudo, faz o leitor questionar sua própria percepção da realidade. Para um leitor desatento ou muito apressado, muita coisa deverá passar batida, mas para quem realmente prestar atenção no trabalho sequencial de imagens criado por McGuire, verá que existem histórias internas sendo contadas com início, meio e fim, de forma alienar e através de justaposições inteligentes de painéis, criando um efeito de simultaneidade de eventos digno da visão de um Dr. Manhattan

Esse convite do artista a um novo olhar sobre o tempo permite ao público refletir sobre como passado, presente e futuro conversam, gerando uma realidade que só existe porque outras situações, séculos ou milênios antes, precisaram acontecer em determinados lugares e a determinadas pessoas… para que o “aqui e agora” fossem exatamente do jeito que os experimentamos. Utilizando estilos, cores e texturas diferentes para cada época, McGuire facilita a imersão do leitor nos quadros sobrepostos, exibindo cada situação com atmosfera, personalidade, emoções (ou ausência destas) típicas de cada Era. Partimos da vida dos animais, dos nativos, dos colonizadores e seus descendentes, e desaguamos em uma visão macro, mostrada através das mudanças climáticas e das mudanças drásticas de um espaço que já foi mar, deserto, geleira, floresta, rio, pântano, área drenada e área novamente inundada. Tanto a experiência humana quanto as mudanças no clima e no planeta ganham vez aqui, numa aplaudível exibição de história geológica e cósmica no melhor estilo “tempo profundo”, de John McPhee. 

Escadas, tapetes, papéis de paredes, lareira, móveis e uma “janela-olho-de-Deus” são os itens recorrentes na história, utilizados em diferentes contextos, por pessoas tendo as mais distintas experiências, algumas sozinhas, outras acompanhadas. A grandeza desta aventura está na habilidade do autor em transformar uma ideia simples numa fantástica desconstrução do tempo e do espaço. Por meio de fases, luzes e atmosferas muitíssimo bem orquestradas, o artista revela as poderosas possibilidades de uma narrativa gráfica exploradas com inteligência. O resultado é uma experiência visual e emocional que ultrapassa muitas linhas de qualidade e cria uma relação inesperada com o público, convidando à contemplação e análise de coisas que integram tudo aquilo que vivemos, mas que não estão, exatamente, aqui.

Aqui (Here) — EUA, 1989 – 2014
Roteiro: Richard McGuire
Arte: Richard McGuire
Publicação original: Raw – Vol. 2, #1
Editora da versão original (1989): Penguin Books
Editora da versão ampliada (2014): Pantheon Books
No Brasil: Quadrinhos na Cia; 1ª edição (24 de julho de 2017)
306 páginas

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