Não dá para ficar indiferente a um enredo que se propõe observar um espaço fixo, enquanto o tempo se desdobra ao seu redor. Aqui (Here, 2024), adaptação do aclamado quadrinho de Richard McGuire, abraça a essência dessa premissa e a eleva com uma ambição cinematográfica que salta aos olhos… mas não necessariamente o coração. Dirigido por Robert Zemeckis (vindo de Pinocchio, 2022), que assina o roteiro com Eric Roth (vindo de Assassinos da Lua das Flores, 2023), o filme adota uma narrativa não-linear que atravessa milênios, mergulhando nas histórias de uma única sala e de seus habitantes ao longo do tempo. O uso de telas subdivididas e a tecnologia de rejuvenescimento do elenco — com destaque para Tom Hanks e Robin Wright, reunidos novamente após Forrest Gump — configuram um exercício formal que encanta pela inovação visual, mas tropeça em sua falta de alma narrativa.
A atenção dada pela produção aos elementos técnicos de Aqui não pode ser subestimada. A escolha de uma câmera fixa no centro da sala como ponto de vista do espectador encapsula a essência do material original: um espaço como protagonista quase nunca silencioso. Cada quadro dividido e cada sobreposição de tempo é um convite ao público para contemplar as camadas de vivências que coexistem num mesmo lugar. Há um dinamismo extraordinário na forma como a mise-en-scène de Zemeckis captura as transformações do ambiente — um cenário ora estático, ora vivo — e como o tempo traz novas pessoas, gostos, necessidades, sonhos, frustrações e ações à tona. Visualmente, é um “espetáculo técnico” que brinca com a nossa percepção utilizando a linguagem cinematográfica.
No entanto, a técnica, por mais refinada que seja, não substitui a conexão emocional, e é aqui que o longa se perde. Diferentemente de filmes como Arca Russa (2002) e Boyhood (2014), exemplos de experimentos formais que conseguem aliar o deslumbramento técnico a uma narrativa forte e palpável, Aqui falha em engajar o espectador com as histórias humanas que tenta contar. O virtuosismo visual de Zemeckis parece engolir a própria narrativa, como se o filme estivesse mais preocupado em impressionar e dar coerência à sua não-linearidade do que em criar personagens e situações que realmente importem na progressão e no todo da fita. Há uma esterilidade que permeia a obra, uma desconexão que impede o público de sentir o peso do tempo e das vivências retratadas.
O elenco, que conta com talentos indiscutíveis como Tom Hanks, Robin Wright e Paul Bettany, não encontra espaço para brilhar. O rejuvenescimento digital, embora impressionante, não compensa a falta de tratamento mais profundo para as performances. É como se os personagens fossem joguetes de luxo em uma tela que privilegia o artifício em detrimento da humanidade expressa pelo elenco. O quadrinho de Richard McGuire, em contraste, conseguia condensar séculos de história em poucas páginas, oferecendo um equilíbrio perfeito entre forma e conteúdo. No filme, esse equilíbrio se desfaz, deixando um vazio onde deveria haver substância.
Há, ainda, um problema estrutural que amplifica essa desconexão: a fragmentação narrativa trabalhada com muitos tropeços pelo diretor e pelo roteiro. Embora a ideia seja fascinante (como já discuti na crítica da HQ), a execução audiovisual carece de algo que amarre as diferentes histórias num todo emocionalmente ressonante. O foco na família de Hanks e Wright não é suficiente para ancorar o filme e satisfazer essa necessidade, e as demais histórias, por mais visualmente intrigantes que sejam, carecem de peso dramático, especialmente a mais recente, ao menos antes do corte da pandemia. É como se o filme fosse uma série de quadros belíssimos, mas sem o fio narrativo que os conecte firmemente.
Aqui desafia o espectador com sua brincadeira técnica, mas oferece pouco além disso, impressionando pela engenhosidade visual, mas deixando, ao cabo, uma grande sensação de vazio. Apesar de esteticamente marcante, o trabalho de Robert Zemeckis carece de fulgor narrativo, o que acaba comprometendo a força de sua proposta. A maior ironia do filme está justamente em sua premissa: uma reflexão sobre o impacto do tempo em um espaço único, que, paradoxalmente, ignora aquilo que deveria ser central — as histórias humanas que dão vida ao lugar. O tempo, afinal, não é apenas a passagem de eventos; é a soma de experiências, emoções e significados que dão profundidade à existência. Sem essa âncora emocional, Aqui não consegue transcender sua própria técnica e se tornar memorável. O que resta é um filme belo, mas indiferente, cuja forma grandiosa jamais encontra a substância necessária para tocar o espectador por um tempo maior do que sua própria exibição.
Aqui (Here) — EUA, 2024
Direção: Robert Zemeckis
Roetiro: Eric Roth, Robert Zemeckis, Richard McGuire
Elenco: Tom Hanks, Robin Wright, Paul Bettany, Kelly Reilly, Ellis Grunsell, Teddy Russell, Finn Guegan, Callum Macreadie, Lauren McQueen, Grace Lyra, Jemima Macintyre, Billie Gadsdon, Beau Gadsdon, Harry Marcus
Duração: 104 min.