Devo começar a minha crítica para este curta experimental de Edwin Lo, artista de Hong Kong com grande interesse pelas relações entre indivíduo, História e espaço, dizendo que a frase-título, se lida como uma espécie de “ordem definitiva”, pode complicar muito o debate sobre a obra. Foi em A Vida da Razão (1905 – 1906), que o filósofo e poeta espanhol George Santayana escreveu o famoso aforismo, hoje repetido constantemente para mostrar o quanto o conhecimento dessa disciplina das Ciências Humanas pode evitar que a “parte má” da História se repita. E já para tirar isso de cena, fica aqui a minha sentença para essa receita aparentemente divina (ter memória = zero erros do passado): isso é a mais pura e absoluta bobagem. Ainda mais em tempos de multiplicidade de telas, fontes (falsas e verdadeiras), fear of missing out e a paranoia opinativa que tenta todo mundo querer falar sobre tudo. Em todo lugar. A qualquer momento.
Como a frase é utilizada aqui fora de contexto (talvez ressignificada, como o é no cotidiano das ideias compartilhadas internet afora), ressalto que essa marcação que faço a ela também é fora de seu contexto original. Em A Vida da Razão, sua análise ganharia um outro tipo de abordagem, e quem sabe no futuro eu não escreva uma crítica dos cinco volumes que compõem a obra? Neste documentário, porém, o artista chama a atenção para uma tentativa de reparação anacrônica, às vezes tardia, às vezes demasiadamente culpada ou fingida de um passado ruim, utilizando para isso os mais diversos caminhos possíveis: vida pessoal, vida política, discussão ideológica, oposições raciais, divergências de classe, etc.
O filme utiliza imagens Outlast 2 e contrasta essas imagens do jogo com as fotografias do Templo do Povo, onde aconteceu o maior suicídio coletivo da História, em 18 de novembro de 1978. Essa exposição da tragédia vem aliada às muitas ideias que motivam a ocorrência de horrores, algo que o diretor exibe alternando imagens do FBI, contextos visuais alheios a esse cenário (como um tipo de fuga, alucinação ou ida do macro para o micro espaço) e também alternando discursos, apresentação de ideias revolucionárias, desejos de tomar e o poder, blues, jazz e uma ou outra confissão.
Para mim, é um caminho de reflexão sobre a imitação e não sobre a repetição da História (mas essa é uma leitura crítico-histórica minha, talvez não tenha sido a intenção do diretor). A variação de espaços violentos, de discursos engajados e de chamada à ação nos faz pensar sobre o quanto essa chama que denominamos “vida” pode iluminar… e por quanto tempo ela deve iluminar o mundo. Mais ainda: o que essa chama fará para tornar o seu espaço um lugar melhor? Quais serão as suas armas? Estará sozinha? Acompanhada? O que pensará? Como entrará para a História? É verdade que a ausência de memória facilita situações que imitam pensamentos e violências do passado. Mas cada horror na História possui o seu mote próprio, a sua caraterística, a sua identidade. Não existe “repetição da História“. Todavia, as violências que a acompanha… parecem jamais morrer.
O que Edwin Lo talvez esteja apontando aqui é uma forma de entender, gravar e dedetizar o porão podre da História, para que de lá não surja inspiração, espelhos e modelos de adoração. Para que monstros contemporâneos não criem o seu próprio palco. A sua própria Era de segregação. E o seu próprio rastro de sangue.
Aqueles Que Não se Lembram do Passado São Condenados a Repeti-lo (Those Who Do Not Remember The Past Are Condemned To Repeat It) — Hong Kong, 2020
Direção: Edwin Lo
Roteiro: Edwin Lo
Duração: 26 min.
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Assistindo a Dor dos Outros
A diretora Penny Lane (do excelente Hail Satan?) é uma grande provocadora. De filmes sobre o aborto e sobre relacionamentos até obras de cunho puramente político ou investigativo, ela consegue transmitir um alto nível de preocupação, perturbação e material para discussão aos seus espectadores, fazendo com que seus filmes vivam, mesmo muito tempo depois de haverem terminado. Uma dessas obras, The Pain of Others (2018), chamou a atenção da jovem cineasta francesa Chloé Galibert-Laîné, que após sair da sala ainda no início da projeção do filme, em um Festival, procurou voltar a essa produção em casa, enfrentando seus medos e buscando algo que ela não sabia que havia perdido. Assim nasceu este documentário.
O que encontramos aqui é um inteligente exercício intermidiático e metalinguístico. A diretora parte de uma insatisfação pessoal para uma investigação, após assistir a um filme que a incomodou. É um exercício crítico e ao mesmo tempo uma criação artística indagadora, que em nenhum momento perde a ligação entre aquela que busca respostas e se identifica com a premissa (a cineasta) e a vida de outras mulheres afetadas por um problema que a medicina acredita não existir: a Síndrome de Morgellons.
Abre-se então uma discussão que entrelaça telas, que utiliza material de apoio para discutir com o público um determinado pensamento e que estabelece contatos diretos, indiretos e imaginados com outras pessoas. O ponto é justamente esse princípio de diálogo que a cineasta leva para todas as partes: na forma como aborda o tema conversando com o público, na forma como investiga o tema conversando com as fontes, na forma como aprofunda o tema conversando com Penny Lane e na forma como ela assume as emoções do tema conversando consigo mesma e com as mulheres que sofrem desse mal.
De teorias da conspiração até a discussão sobre a histórica mania de desacreditar e dizer que uma mulher é histérica toda vez que ela reclama de algo, o filme estabelece constante diálogo, buscando falsear as informações que traz e, acima de tudo, manter a dúvida ativa através de uma abordagem que não se recusa a assumir posição pessoal, mas tem a plena noção da necessidade que mostrar os vários lados possíveis, além de ir muito além daquilo que foi apresentado como “causa e sintomas” de um novo mal. Não gosto da forma como a diretora finalizou a obra, mas todo o seu desenvolvimento é um atrativo, bizarro e inovador processo de criação de uma pauta documental… através de um documentário.
Assistindo a Dor dos Outros (Watching The Pain of Others) — França, 2018
Direção: Chloé Galibert-Laîné
Roteiro: Chloé Galibert-Laîné
Elenco: Chloé Galibert-Laîné
Duração: 31 min.