- Há spoilers.
Em 2019, como parte das comemorações dos 40 anos de Apocalypse Now, Francis Ford Coppola retornou à sua obra-prima antibelicista mais uma vez para entregar o que acabou sendo batizado de Corte Final, uma “nova” versão do longa que o cineasta reputa como sendo sua favorita, algo que não poderia ser diferente, já que ele afirmou isso justamente no contexto do relançamento do filme no cinema e o subsequente lançamento em vídeo doméstico. Subsidiariamente, ele também aproveitou o ensejo e comemorou os 35 anos de Cotton Club revisitando o longa para criar Cotton Club Encore, matando os proverbiais dois coelhos com uma cajadada só. No entanto, diferente de Cotton Club, que ganhou alterações mais profundas, o Corte Final de Apocalypse Now que, na verdade, é baseado em Apocalypse Now Redux, de 18 anos antes e que marcou a primeira vez em que Coppola mexeu em seu longa, inserindo diversas sequências que haviam ficando no chão da sala de edição, é muito mais um triunfo técnico de remasterização do que algo relacionado com as alterações de mérito no longa, mesmo que Coppola tenha reduzido os 202 minutos de Redux para 183 nessa sua terceira versão, efetivamente criando um meio termo se lembrarmos que o original de 1978 tem 153 com créditos.
O que o diretor fez, aqui, foi reavaliar as inserções que usou para criar Redux e redimensioná-las. Com mencionei da crítica do longa de 2001, foram quatro grandes cenas que Coppola resgatou e trouxe de volta ao seu filme: (1) o desfecho da cena de ataque ao vilarejo vietcongue pela Cavalaria Aérea de Kilgore; (2) o reencontro de Willard e companhia com as Coelhinhas da Playboy; (3) a cena da plantation francesa de borracha e (4) as cenas adicionais de Kurtz. As demais pequenas alterações estão mais na seara de detalhes aqui e ali que, claro, no agregado, emprestam outras qualidades ao longa e o que ele fez em Redux nesse aspecto ele manteve no Corte Final. A grande diferente é que, para tornar Redux possível, boa parte do elenco foi chamado de volta para gravar novos diálogos e tanto o montador quanto o diretor de fotografia do longa de 1979 sentaram com Coppola. No Corte Final, esse longo e dispendioso trabalho não foi mais necessário e o cineasta ateve-se a realmente tentar equilibrar as duas versões anteriores de sua quarta obra-prima seguida dos anos 70.
Com isso, a cena em que Willard (Martin Sheen) e companhia se reencontram com as Coelhinhas da Playboy foi completamente eliminada, ao passo que a sequência do furto da prancha de surfe de Kilgore (Robert Duvall), que encerra a inesquecível cena da Cavalgada das Valquírias foi mantida intacta, o que de imediato eu reputo como uma escolha equivocada de Coppola. Willard pegando a prancha para pregar uma peça em Kilgore é um momento sem dúvida interessante, até divertido, mas ele é tonalmente muito estranho para o protagonista naquele momento de sua jornada, ou seja, ainda bem no começo. Por outro lado, a chegada dele e de seus subordinados a uma base semidestruída e debaixo de chuva, somente para ele negociar duas horas das coelhinhas com seus homens é um momento tão absurdamente degradante e revelador que ele precisava ser mantido. Na verdade, diria que o melhor seria Coppola ter reduzido a duração das duas cenas para mantê-las no filme e é uma pena que não tenha feito assim ou invertido a lógica do que manteve versus o que eliminou.
A famosa cena da plantation que muita gente desgosta foi ainda bem mantida, mesmo que em uma versão mais esguia, com 10 minutos a menos do que os 25 originais. Ela continua funcionando muito bem, com a grande vantagem de não parecer tão marcadamente um desvio na jornada fantasmagórica de Willard, quase que como uma mni-história independente sobre o passado da colonização francesa na Indochina. E, no caso das cenas do Coronel Kurtz (Marlon Brando) fora das sombras, algo que nunca fui muito fã, Coppola encontrou o ponto de equilíbrio ao reduzir a “exposição”, por assim dizer, do perturbado oficial alvo da missão de Willard. Pela janela foi a leitura da revista Time por Kurtz a Willard, o que nada realmente agregava, levando à impressão de que as sequências nas sombras retornaram com força total, mantendo aquela necessária aura de mistério e horror que a presença imponente de Kurtz exige.
No lado técnico de remasterização, serei breve e apenas desejo salientar que o longa original, que foi filmado por processo fotoquímico em 35mm com câmeras Arriflex e lentes anamórficas, nunca ficou tão bonito, talvez apenas lá pelos idos de 1979. O Corte Final marca a primeira vez em que esse trabalho técnico foi feito a partir dos negativos originais de câmera e não de uma versão interpositiva (basicamente uma cópia “positiva” do negativo original), como foi o caso de Redux. Trata-se também da primeira vez que o filme foi escaneado diretamente em 4K e, sendo muito sincero, o ganho de imagem é impressionante em relação ao já exemplar trabalho feito na versão anterior, algo que pode ser particularmente visto na textura, nas cores e nos grãos do filme físico original, com um cuidado imenso para que os chamados “artefatos” físicos da filmagem de 1977 não fossem suavizados ou apagados como acontece em tantos filmes antigos relançados em discos digitais ou diretamente em vídeo sob demanda ou streaming. O que se vê, muito claramente, foi que Coppola usou tecnologia de ponta para reverter seu longa ao que ele era na origem para oferecer ao espectador a experiência mais próxima possível de se estar em 1979 na sala de cinema (se, claro, o espectador não cometer o crime de assistir essa cópia em tela pequena ou em televisão grande desregulada, com brilho estourado e contraste enloquecidos, que é a configuração de loja, basicamente).
Diferente de Coppola, não tenho Apocalypse Now – Corte Final como minha versão preferida, que continua sendo a original. Ela está levemente acima de Redux, que talvez exagere nas novas inserções, mas a grande verdade é que Apocalypse Now é Apocalypse Now em qualquer uma das três versões disponíveis. Trata-se de uma experiência cinematográfica rara que precisa ser vivida novamente de tempos em tempos como Willard que não consegue ficar distante muito tempo do conflito.
Apocalypse Now – Corte Final (EUA, 2019)
Direção: Francis Ford Coppola
Roteiro: Francis Ford Coppola, John Milius (baseado em obra de Joseph Conrad)
Elenco: Martin Sheen, Robert Duvall, Frederick Forrest, Albert Hall, Dennis Hopper, Harrison Ford, Marlon Brando, Sam Bottoms, Laurence Fishburne, Collen Camp, Christian Marquand, Aurore Clement, Roman Coppola, R. Lee Ermey, Francis Ford Coppola, Vittorio Storaro, Christian Marquand, Aurore Clément, Roman Coppola, Gian-Carlo Coppola, Michel Pitton, Franck Villard, David Olivier, Chrystel Le Pelletier, Robert Julian, Yvon Le Saux, Henri Sadardiel, Gilbert Renkens
Duração: 183 min.