Aparições antes do café da manhã (1928) é o sexto filme dirigido por Hans Richter. Para além das experimentações com formas geométricas brutas (refiro-me à sua Trilogia Rhythmus), o cineasta resolveu trazer uma organização do espaço rítmico-geométrico para os objetos cotidianos, transformando a “verdadeira realidade” em um desfile de formas e absurdo.
No plano inicial do curta, um relógio é adiantado em uma hora (de 10h para 11h). Em seguida, quatro chapéus saem voando, e uma bandeja com xícaras vazias cai do alto de uma janela. Observamos aqui o uso do som em contraponto simbólico: ao invés de ouvirmos o barulho de louça quebrando, ouvimos latidos e pios. Um homem tenta, sem sucesso, dar um nó em sua gravata que tem vida própria, e desata-se.
Consideramos que as alterações temporais (relatividade) que estão por todo o curta, correspondem ao tempo usado pelos quatro protagonistas do filme desde o momento em que se levantam da cama, até o momento em que se sentam à mesa do café da manhã, e as “aparições” seriam os desejos, os pensamentos, e a representação da vida ou do humor deles.
Um bom exemplo dessa representação é a sequência seguinte à do homem e a gravata viva. No próximo plano, a gravata desatada e o colarinho executam uma espécie de dança. No plano seguinte, aparece um alvo de tiro, e uma mão retira uma pistola do bolso do paletó: representação da raiva ou da virilidade masculina, em oposição à flácida gravata \ colarinho? Nos planos seguintes, pistolas de diversos tamanhos aparecem, se multiplicam, se cruzam, se separam, e desaparecem. Duas cabeças de homem surgem separadas do corpo. A primeira gira, e a segunda se divide, como um espírito¹.
Os protagonistas passam a procurar seus chapéus, que mudam de lugar a toda hora, pulando de arbusto em arbusto. Sabemos que o símbolo do chapéu é o mesmo que o da coroa: poder (de alguma forma, mesmo que seja uma afirmação da masculinidade como figura provida de poder), o que justifica as estripulias que esses homens farão para reconquistá-los. Vemos portas se abrirem e se fecharem. Um hidrante se desenrola e passa a jogar água para dentro do chapéu, que fica suspenso no ar. Por fim, o chapéu vai ao chão, e a água o arrasta. No plano seguinte, após o recuo mágico da água para dentro do hidrante, ele se enrola novamente. Temos elementos de sobra para aludirmos a uma relação sexual, ou o desejo desta, como uma das “aparições” mentais, sugeridas pelo título.
Conforme o filme avança, os homens lidam com frustrações e repressões. Em uma cena, vemos um casal sair desconfiado e apressado de dentro de um galpão. Em outra, um grupo de homens passam por um poste de luz, e desaparecem – o mesmo efeito usado por Knechten em Cockeyed (1925). Num outro plano, uma comparação metafórica: os chapéus arredios são alternados por um bando de aves no céu. Dúvida: algum dia os homens alcançarão “todo o poder” que tanto buscam?
Cinco homens barbudos são contrapostos a takes de mulheres com longos cabelos, filmadas de costas. Mais uma vez estamos diante de símbolos de virilidade, força e sabedoria (vide as barbas dos filósofos gregos e a força do personagem bíblico, Sansão, que se concentrava nos cabelos). Conforme os planos se alteram, as barbas desaparecem e os cabelos são cortados. Quatro espingardas apontam para a câmera. No plano seguinte, os homens caminham tentando alcançar os chapéus. Mesmo deserotizados (sem a barba), esses homens não desistem da busca pelo poder, e os vemos marchar, subirem e descerem escadas sem nunca chegar a lugar algum. Ora, se a escada simboliza a ascensão, a valorização, a ligação entre dois mundos, temos aqui, duas indicações:
1 – A busca pelo poder (ascensão) é sempre contínua, porém não leva a nenhum lugar além dessa própria busca, como um vício, que quanto mais se tem, mais se quer.
2 – A busca por uma ligação com o divino, que tem o mesmo caminho do poder: o fiel, tentando alcançar o Paraíso, trafega entre a Terra (pecado) e o Céu (salvação), nunca conseguindo não pecar, e nunca alcançando a desejada santidade, outro vício.
O relógio marca dez para o meio-dia. Lembremos que meio-dia é hora da plena luz, não existem sombras, o símbolo da dúvida. Aparecem várias mãos na tela, instrumentos de atividade e dominação, que termina em uma briga entre dois personagens – não tendo dado certo a busca pelo poder, o único jeito é tomar através da força, o que resta do outro.
As angústias internas se aplacam com a quebra narrativa do filme: a bandeja que vimos cair no início reaparece. Os pedaços de juntam, há um retrocesso. Aqueles fantasmas antes do café da manhã começam a desaparecer. Um criado barbudo serve a mesa. Quatro homens sem barba sentam-se. Ignorantes e deserotizados, a única coisa que possuem no mundo, reaparece: os chapéus, que nesse caso, não esconde simbolizar o poder financeiro. O relógio avança. As aparições dão lugar a um descontraído café da manhã, um novo dia começa. O relógio se quebra ao meio em pleno meio-dia (hora da plena luz, sem sombras), embora ainda sejam dez horas da manhã. No espaço entre as duas partes do relógio, a palavra que afirma que aquele pesadelo matutino acabou pelo menos até a próxima manhã: fim.
1 – A semelhança da abertura de Eraserhead (David Lynch, 1977) com esse take, é inacreditável.
Aparições Antes do Café da Manhã (Vormittagsspuk) – Alemanha, 1928
Direção: Hans Richter
Roteiro: Hans Richter e Werner Graeff
Elenco: Werner Graeff, Walter Gronostay, Paul Hindemith, Darius Milhaud, Madeleine Milhaud, Jean Oser, Willi Pferdekamp, Hans Richter
Duração: 6min.