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Crítica | Ao Mestre, Com Carinho

Educação sentimental.

por Fernando JG
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Um engenheiro vindo da Guiana Inglesa e com problemas na sua profissão primária se candidata ao cargo de professor de matemática num colégio do subúrbio da Inglaterra. Ao que tudo indica, e como presencia no seu primeiro dia de aula, a sala em que vai trabalhar não é das melhores, e será antes um desafio do que um ofício tranquilo. Ele, o personagem interpretado por Sidney Poitier, Mestre Mark, terá que lidar com a turma mais problemática do colégio mais rejeitado da região. De fato, as dificuldades aparecem no primeiro dia, ao abrir a porta, mas é sobretudo com ares de reviravolta que o longa-metragem inicia o clima da sua trama, trabalhando em cima disso toda a intriga do enredo. 

Comecemos com as falhas. Embora o filme apresente um protagonista negro situado na metade da década de 60 – década dificílima para este recorte populacional -, não discute temas raciais, ainda que aponte para a questão em alguns momentos do filme. Soa contraditório que o grande herói seja racializado num contexto específico e que não se utilize disso para “complexificar” as relações existentes entre as diferentes etnias na sala de aula. É ainda mais gritante porque toda a sala é branca, o que gera um contraste importante, mas que parece ter zero utilidade. As marcas de época não são um problema grave, mas incomodam pelo tom muito passadista que caracterizam o filme, sobretudo para quem o assiste pós anos 2020, onde muitas posições da hierarquia social, como as da mulher, já estão em vias de se tornarem obsoletas. 

Me agrada, contudo, e me espanta também, a estrutura fortemente dialética do longa-metragem, que opta sempre por um marcador forte para evidenciar esse embate entre estudante e professor, que, ao fundo, se traduz na interpretação geral do filme como uma espécie de “bem contra o mal” enquanto elemento que move a ação da fábula fílmica. A má-educação social é transformada por meio de um ato pedagógico potentíssimo e socialmente engajado, convertendo o que era ruim em algo bom. O tom é sempre humanista e parte da premissa mais basilar da educação universal: a todos é possível que se aprenda tudo. 

É muito singular que a figura dos alunos indisciplinados não indicam uma individualidade, isto é, não estamos falando de um estudante em específico – da difícil Pamela Dare (Judy Geeson) ou do problemático Bert Denham (Christian Roberts) -, estamos lidando com o retrato de um coletivo. Quero dizer, o personagem é coletivo e representa, por meio de um microssistema (a sala de aula indisciplinada), um macrossistema (a sociedade como um todo). A sala de aula serve como laboratório para um experimento social bem sucedido, que transforma o sujeito coletivo como um todo, tornando-o sociável, e assim a película acena para um otimismo consistente na sua leitura das relações humanas. E claro, toda esta mudança positiva de status tem nas mãos de um professor a chave mais essencial. 

Ainda, o filme opera como se empurrasse a todo instante os seus atos iniciais para a peripécia, que seria o momento em que esses alunos indisciplinados ganhariam então alguma disciplina e passariam a ver o professor Mark, já profundamente desrespeitado a determinada altura do filme, como um exemplo caro de ser humano, de sujeito social. Desde o início, a direção aponta para esse lugar que fica no intermezzo da película e faz com que as ações que o antecedem sejam bruscas e por vezes duras para que, ao mudar o status do enredo, nos deleitemos com a mudança gerada no âmago não apenas dos alunos, mas do próprio filme, que adquire um tom distinto da primeira parte, trazendo sempre, em cada tomada a partir de agora, um aspecto de comoção e emoção retórica, de modo que a ligação forjada entre o Mestre e os estudantes torna-se em algo próximo a um afeto sentimentalíssimo, introduzindo em cada alínea do roteiro ideias de respeito, humanidade, decoro, igualdade e compaixão.

Fato é que, a priori, não interessa a reviravolta, mas o modo como ela é conduzida na mise-en-scène, isto é, a maneira, as estratégias, os diálogos e os comportamentos que levaram a essa peripécia e o filme demonstra isso passo a passo, com um roteiro firme, que não deixa ponto sem nó. Em todos os atos, mesmo depois de garantido o respeito e sobretudo após a mudança de fortuna (motivo central do filme), o mestre continua a ensinar por meio de gestos, decisões e posturas diante de situações que aparecem. É preciso ser espelho. Pela sua abordagem intencionalmente humana e didática, o enredo quer mesmo é dialogar com o público, uma vez que, salvo em casos de exceção, todos tiveram, em algum momento, um professor que, pelo bom exercício da sua função, aparentou ser muito mais do que um. 

Um ponto interessante é a ideia de personagem neste filme. Não estamos diante daqueles com os quais se fazem por aí os famosos “estudos de personagem”. E mesmo a ideia de um personagem tradicional aparece muito deformada aqui; primeiro porque um deles não é individual, mas coletivo, como já apontei, e o filme nos força a analisar o coletivo e não o sujeito em si. Este é o que sofre a ação. Por outro lado, temos o que mais se aproxima de um personagem tradicional, que é aquele a que nos reportamos por Mark Thackeray ou Mestre Mark – e que pratica a ação -, contudo, também não sabemos nada a respeito de sua vida pessoal, apenas o que ele mesmo nos conta, num distanciamento proposital e semelhante ao que se dá em sala de aula entre aluno-professor. A figura do professor Mark e sua construção é direcionada para algo que chamamos de “espelho de príncipe”, um modelo para que possamos nos espelhar e imitar. 

Deste modo, o filme adere a um aspecto mais impessoal, privilegiando não o sujeito e seu protagonismo. Não importa suas vitórias pessoais, mas sim as ações praticadas com vistas ao todo. Com relação a isso, escolhe-se um foco narrativo distanciado, nada subjetivo, e uma estrutura cênica objetiva. E veja, mesmo que o enredo não fale nada a respeito dos nossos heróis, não é preciso, pois acabamos por saber, pelo próprio curso das coisas, que o nosso personagem coletivo é socialmente vulnerável e que Mestre Mark é demasiadamente humano. É muito mais prazeroso quando a naturalidade do filme nos faz perceber algo sem precisar evidenciar. 

Estamos diante dos resultados de uma excelente semeadura – semeadura alegórica que representa muito mais do que a sala de aula, mas indica a possibilidade de transformação do gênero humano por meio pedagógico. Ou melhor, demonstra a possibilidade de mudança social, trabalhando a partir de categorias menores para expressar verossimilhança na ficção e deixar tudo com um aspecto de “possível”, de “verdade”. O início do segundo filme (Ao Mestre, Com Carinho 2, Peter Bogdanovich) tem seu ponto de partida numa frase essencial e que resume a atitude do mestre: “quando se ensina não se pode deixar de aprender”. É. Riobaldo estava certo: mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. 

Ao Mestre, Com Carinho (To Sir, With Love, Reino Unido, 1967)
Direção: James Clavell
Roteiro: James Clavell (Baseado no romance autobiográfico To Sir, With Love, de R. Braithwaite)
Elenco: Sidney Poitier, Christian Roberts, Judy Geeson, Suzy Kendall, Lulu, Faith Brook
Duração: 105 min.

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