John Hughes não era apenas um gênio na compreensão do universo adolescente como também era um gênio na elaboração de comédias familiares. Embora, em sua curta carreira atrás das câmeras com apenas 8 filmes, Antes Só do que Mal Acompanhado seja o maior representante desse seu lado não colegial, como roteirista ele já havia provado que não precisa estar no seu conforto temático para mostrar seu talento nato e muito específico no trato do gênero. O cineasta faz parte de uma escola de diretores que simplesmente não se contentavam em apenas filmar seus astros verbalizando piadas implementadas no script como também apresentavam toda uma articulação do humor em todas as suas vertentes (verbais, físicas, cartunescas, escatológicas) por meio dos recursos da linguagem cinematográfica.
Parece básico, mas é raro ver comédias como Antes Só do que Mal Acompanhado, que utilizam tão bem a imagem para contar sua história, ou melhor, fazer de sua história uma coisa naturalmente engraçada, além de deliciosa de se assistir pelo timing perfeito de ingenuidade no tom leviano e nas intersecções emocionais precisas dos dramas de seus personagens. Hughes aqui une o que de melhor ele tinha aprendido tanto como roteirista, ao desenhar comédias universais muito adaptáveis aos momentos de filmagens, quanto como diretor, na forma eficiente como ele unifica esquetes episódicos por meio de uma comunicação em comum. Assim, seus filmes (este incluso) soavam tão improvisados quanto planejados, porque de fato o texto abria muita margem para improvisos ou construção isolada de sequências inteiras só com pistas de imagem, que eram tão bem planejadas no senso acumulativo do efeito cômico que não perdiam nem seu valor isolado nem seu valor unitário com o restante da narrativa.
É verdade que em termos de estrutura e originalidade de roteiro, Antes Só do que Mal Acompanhado lembra muito Férias Frustradas – também escrito por Hughes – no sentido de propor uma sucessão de desafios provocados pelo azar do protagonista (Steve Martin, excelente e diferente do habitual), que precisa se ater ao tempo para chegar em um determinado objetivo. Mas as semelhanças param por aí, porque primeiro, além do tempo aqui ser um fator de maior relevância na urgência da história, a companhia (John Candy, igualmente excelente e não apenas dependente do humor físico) e a forma como a viagem de desenrola, por meio de todo tipo de transporte (o que dá nome ao título original), têm uma dinâmica bastante original e pensada primordialmente para estabelecer um arco de virada ao personagem condizente com o feriado em que se passa. É um filme sobre o Dia de Ação de Graças em que o protagonista é o ser mais egoísta imaginável, o que a princípio é uma ótima base para a introdução poder rir sem pena dos primeiros infortúnios que sua jornada o reserva.
O filme começa rindo muito de seu protagonista, Neal, mas ao mesmo tempo também transfere ao público sua posição de desconforto, que aos poucos se tornará a ponte para que seu caráter egocêntrico possa ser revertido de forma empática, tal como seu parceiro, Del, que de alívio cômico passa através da dinâmica a ser um personagem com mais camadas, que vão não só mudando essa perspectiva de Neal da situação como simultaneamente transformam a personalidade alegre de Del em ares melancólicos. A justaposição de contrastes entre os dois, portanto, não é só um aparato cômico extremamente divertido de se acompanhar nas ótimas e absurdas situações (nem vou numerar as cenas memoráveis para quem não viu ainda) em que Hughes os coloca e vai a fundo – até o limite da paciência de Neal e o limite da ingenuidade de Del – para aproveitar ao máximo o que a química dos personagens pode contribuir para tornar os esquetes mais engraçados; também constrói em pano de fundo uma dramaturgia humana de altíssimo nível entregue pelos seus intérpretes.
Cai no velho clichê de um ajudar o outro a enfrentar suas dificuldades particulares, mas os contornos são muito significativos com a presença da data especial. É tão óbvio e ao mesmo tempo tão inesperado por ser uma comédia tão inocente, mas também tão madura. Como qualquer outra piada do filme, esse arco consegue trazer a quebra de expectativa mesmo sendo muito antecipado pela data, pela família e por outros elementos brilhantemente manipulados por Hughes para essa crescente de aconchego acontecer de forma tão impactante que do nada paramos de rir daqueles personagens para rirmos com eles, da alegria à celebração do verdadeiro espírito da ação de graças, quando ajudar ao próximo pode ressignificar vidas e personalidades.
Antes Só do que Mal Acompanhado (Planes, Trains & Automobiles | EUA, 1987)
Direção: John Hughes
Roteiro: John Hughes
Elenco: Steve Martin, John Candy, Laila Robins, Michael McKean, Dylan Baker, Carol Bruce, Larry Hankin, Richard Herd, Matthew Lawrence, Diana Castle, Bill Erwin, Ben Stein, Lyman Ward, Edie McClurg
Duração: 93 minutos