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Crítica | Anora (2024)

Cinderela nova-iorquina.

por Luiz Santiago
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Vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2024, Anora é um conto moderno de Cinderela com um toque agridoce. Dirigido por Sean Baker, cineasta com uma filmografia marcada por retratos sensíveis de grupos ou pessoas marginalizadas, o longa é uma comédia que se assume sem nenhuma vergonha, centrada na vida de Ani (Mikey Madison, em atuação fantástica), uma dançarina erótica/prostituta que trabalha em Brighton Beach, Nova York. Na primeira parte do filme, o diretor nos livra de todo tipo de conflito e, para os mais ansiosos, isso pode gerar uma grande expectativa aliada ao medo de que a fita irá passar sem momentos memoráveis, o que está bem longe de ser verdade. Essa preparação do primeiro bloco é necessária. Nela, o diretor define com muita clareza o Universo de Ivan (Mark Eidelshtein, outra grande atuação da fita), filho de um oligarca russo que está nos Estados Unidos vivendo com os mimos milionários fornecidos pela família, divertindo-se, no sentido mais amplo possível da palavra. O ponto de virada acontece quando ele se casa com Ani e, dias depois, a família descobre e começa a fazer de tudo para anular o casamento.

Embora seja perfeitamente compreensível a função narrativa da primeira parte, não dá para negar que ela é muito mais longa do que o necessário. Considerando que a melhor parte da obra — ou, para ser ainda mais exato, o verdadeiro filme — acontece depois da descoberta da família de Ivan, fica muito contrastante a estrutura e a fluidez da obra entre as duas partes. Na primeira, o diretor passeia com a câmera despreocupadamente, como um agente externo que olha, sem muitos julgamentos, para as danças, as drogas, o sexo e os esbanjamentos da juventude ali representada, momento onde também percebemos o quão imaturo e irresponsável é o herdeiro russo. Na segunda, Sean Baker adota um caminho que combina muito mais com a estética dos anos 1970 que disse ter sido sua maior inspiração, tanto na construção improvável e genuinamente hilária da comédia social, repleta de fisicalidade, quanto no conteúdo, que às vezes sugere algo um pouco mais tenso — difícil não pensar que os funcionários da família de Ivan são mafiosos assassinos, porque o diretor brinca o tempo inteiro com essa possibilidade — e logo se mostra outra coisa. É desse ponto em diante que o filme brilha, com todo o elenco na melhor de suas representações, e com a obra fluindo intensamente, de maneira a não dar trégua para o espectador.

Mesmo antes do casamento, o espectador saber que esta é uma relação fadada ao fracasso. Primeiro, porque este momento precede a todo um longo estudo sobre o mundo, as motivações e a composição de Ivan como indivíduo. Depois, porque vai ficando cada vez mais evidente as diferenças sociais entre o casal, com a celebração incrédula de Ani, que encontrou resultado em sua busca por amor em circunstâncias improváveis, e os limites impostos pelas estruturas de poder e privilégio. Não deixa de ser a variação de um “conto de fadas moderno“, mas daqueles em que os abismos sociais definem a visão de mundo e a reação dos indivíduos diante das pressões familiares ou similares. Mas não é apenas isso. Considerando a vida de Ani e Ivan, o diretor faz uma investigação cômico-sociológica que descortina a realidade que os cerca, mostrando o lugar de onde eles vêm, como estão preparados para viver suas vidas, realizar seus sonhos e impor-se diante de contrariedades, lutando por aquilo que desejam. Ivan não possui esse poder, porque ele tem absolutamente tudo a perder e nenhuma vontade de deixar os milhões da família para trás. Para ele, tudo é substituível e pode ser comprado. Com a profundidade psicológica de um pires, o personagem aceita as ordens da matriarca e, em poucas horas, despreza e rejeita a mulher que até então tinha sido objeto de sua devoção.

Entre a luz neon e delicada das boates e a luz dura dos ambientes externos e diurnos, a estética de Anora reafirma o contraste criado pela narrativa entre os dois atos principais, utilizando diferentes filtros para este conto de fadas que se transforma num pesadelo amoroso e cômico, com recorte de classe e alguns ingredientes de cunho ético e moral a tiracolo. A maior surpresa destoante e dramatúrgica, nesse cenário, é Igor (Yura Borisov), cuja presença silenciosa e ameaçadora do início encaminha-se para uma sensibilidade inesperada, tornando-se um pilar de apoio psicológico para Ani, dando a ela a chance de finalmente confrontar suas emoções reprimidas. Após uma montanha-russa de emoções, a protagonista não sabe realmente o que fazer. Ela tenta encobrir seus sentimentos e traumas através do sexo banal, mas com Igor, isso não é possível, existe uma barreira que ela não consegue ultrapassar. E então é forçada a olhar para dentro e colocar para fora o que estava guardado. Sean Baker deixa para o final a real manifestação da alma da personagem principal, retirando dela o véu do confronto, da força, deixando-a completamente desarmada diante do silêncio honesto, após a perda de uma vida de luxo e a possibilidade do encontro de um verdadeiro parceiro para a vida. Talvez o único momento de honesta realização que Anora teve em muito tempo. Uma realização diante da qual faz todo sentido chorar.

Anora (EUA, 2024)
Direção: Sean Baker
Roteiro: Sean Baker
Elenco: Mikey Madison, Paul Weissman, Lindsey Normington, Emily Weider, Luna Sofía Miranda, Vincent Radwinsky, Brittney Rodriguez, Sophia Carnabuci, Mark Eidelshtein, Anton Bitter, Ella Rubin, Ross Brodar, Zoë Vnak, Vlad Mamai, Maria Tichinskaya, Ivy Wolk, Karren Karagulian, Vache Tovmasyan
Duração: 139 min.

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