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Crítica | Anomalisa

por Matheus Fragata
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estrelas 5,0

Charlie Kaufman desapareceu. Um dos roteiristas mais interessantes do fim do século passado e da própria história do cinema sumiu após dirigir e escrever Sinedóque, Nova Iorque. Ninguém sabe exatamente o que levou Kaufman a ficar nesse hiato criativo por longos oito anos até agora com o lançamento de Anomalisa. Este, que não é nada mais que uma das melhores animações que pude conferir em minha vida.

Kaufman traz a história de Michael Stone que viaja à Cincinnati para dar uma palestra sobre seu novo livro. Entre o desinteresse pelo mundo e a banalidade da estadia no hotel, Stone escuta a voz que pode mudar sua vida. Desesperado para encontrar essa fagulha de esperança em tirar seu cotidiano do tédio, ele busca pela dona da voz apaixonante. Rapidamente sua busca é concluída. Ele enfim encontra Lisa, a mulher que pode devolver a paixão à sua vida.

Quem lê a sinopse pode pensar que o filme se trata apenas de uma história de amor banal, simples como qualquer outra, mas na verdade está muito enganado. Os filmes de Kaufman possuem a estranheza típica, um quê de extraordinário que simplesmente engajam as histórias de modo poderosíssimo. Assim como em Adaptação, Quero Ser John Malkovich ou Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, Anomalisa possui a bizarrice autoral do roteirista.

O que Kaufman traz aqui é um verdadeiro estudo de personagem como há tempos eu não via. Em meio a tanta simplicidade em diálogos mundanos que capturam a banalidade de situações cotidianas – das quais facilmente o espectador se identificará, acompanhadas do humor delicado do artista.

Como sempre quebrando a barreira do texto, o incomum se dá também no campo visual e sonoro do filme. Isso revela por si só como a direção de Kaufman e Duke Johnson é muito bem pensada, pois dentro do contexto do filme, faz absoluto sentido. Após alguns minutos de projeção, naturalmente, o espectador atento se perguntará se está ficando louco ao notar coisas que variam do sutil para o estranhamento completo. Nesse momento, caso não tenha visto o filme, talvez não valha a pena continuar a leitura, pois para analisar de fato esta belíssima obra, é preciso contar um pouco das características do longa, mas nenhuma revelação do enredo será abordada.

Entre os diálogos circunstanciais e realmente sem importância que Stone tem com outros personagens, percebemos, pouco a pouco, que eles têm a mesma voz. Sim, homens e mulheres, soam iguais na voz suave e constante de Tom Noonan que dubla todo mundo, menos Lisa e Michael. Passado o estranhamento, admito que abri um sorriso maravilhoso ao perceber isso, mas logo depois dei outro ainda maior quando notei que não só a voz do restante dos personagens é igual – o mesmo rosto andrógino de expressões sutis é presente em todos eles. Admito que essa sacada brilhante me fez ter arrepios, pois é algo muito incomum termos um trabalho tão próprio de direção e roteiro que agregue tanto à construção do personagem assim como para a mensagem do filme.

É brilhante, pois isso explica a natureza do estado de espírito de Michael. Nosso protagonista é um cara chato, cansado de tudo, entediado, indelicado, seco e antissocial. Ele simplesmente quer que o mundo se exploda junto com toda a chatice inerente ao convívio social. Para Michael, todos são peças iguais, superficiais, imbecilizantes e tediosas. Todos são descartáveis com vozes e faces desinteressantes. Nisso, entra a competência da dublagem de Tom Noonan. Mesmo mantendo a voz calma e tranquila, Noonan confere lapsos de vida que fogem um pouco da monotonia em alguns personagens mais importantes como a ex-namorada de Michael, Bella, e sua esposa. Algo que por si só, já tornam a figura do protagonista ainda mais complexa, pois tudo, absolutamente tudo foi raciocinado meticulosamente em Anomalisa.

Por conta disso, a escolha por retratar a história via animação em stop motion faz ainda mais sentido e se tomarmos o sentido poético da realização, o filme se torna realmente uma pérola. A animação é o modo mais sutil para empregar esse jogo de faces e vozes iguais.

Entretanto, toda essa complexidade introspectiva do longa pode até mesmo desmotivar alguns. Felizmente não é o caso. Kaufman realmente está compelido a fazer o máximo no limite do aceitável para que o espectador compreenda o que ele quer dizer com seu novo filme. Não se trata de exposição gratuita, mas de diálogos bem inseridos que revelam o âmago de seus personagens. No começo se dá principalmente pelo contraste de Michael, um indivíduo único, em contraponto com personagens semelhantes. Depois, com cenas muito importantes como o encontro entre o protagonista e a sua ex-namorada – aqui Michael começa a ter que lidar com a realidade que ele criou para si mesmo. Ou então na cena que ocorre após um banho quando Michael se encara no espelho.

Então finalmente entra Lisa e o filme se transforma. Com Lisa, Kaufman e Johnson finalmente apresentam a primeira personagem com características marcantes. Seu rosto é único, sua personalidade é viva e colorida e sua voz diferente que é ressaltada diversas vezes por Michael – dublagem excepcional de Jennifer Jason Leigh carregada de doçura e simpatia. A partir das cenas destinadas a desenvolver o relacionamento dos dois, conhecemos um novo Michael. Um protagonista totalmente diferente do que víamos até então. Nas conversas entre os dois, Kaufman tem a oportunidade de reforçar características que julga importantes e também para explicar o título do filme. Entretanto, conhecendo o trabalho do roteirista, o espectador já pode até esperar uma grande virada poderosa nesse núcleo romântico.

Mais especificamente na técnica da direção, a dupla se sai muitíssimo bem. A animação dos bonecos é absolutamente fenomenal. Um nível de perfeccionismo tão assustador que não vemos nenhuma deformação nos moldes ou nos tecidos durante as cenas como é comum ocorrer no stop motion. Até mesmo em cenas muito movimentadas que contam com mais personagens, é possível ver todos se movimentos vividamente em segundo plano ao cuidar de suas próprias vidas e fazerem suas ações. Aliás, os próprios bonecos possuem gama tão vasta de expressões faciais e corporais que chegam a virar um estudo da anatomia humana.

Além da animação, temos a criação dos moldes de cenário e de objetos de cena. Tudo é minuciosamente inserido nos pequenos cenários. Desde o cuidado com o taxímetro, as gotas de água em um vidro embaçado, nas ranhuras do gelo, no detalhe da porcelana da boneca oriental, da caixinha de lenços de um homem pego em um momento íntimo, no carpete, nos botões dos controles remotos, nos fios de cabelo e nas peças de vestiário. Fora isso, o design de produção também insere alguns elementos ditos em diálogos como objetos de cena tornando todo o universo ainda mais crível. Não só a animação que é fluida, mas também a movimentação da câmera quase sempre sutil – raros momentos onde os diretores optam por movimentos mais energizados.

Aliás, o tratamento da câmera também agrega à narrativa já que ela é a prática do exercício do ponto de vista e escuta de Michael. Sempre vemos e acompanhamos o protagonista durante o longa inteiro – com exceção de uma cena que ajuda a elucidar melhor essa mesma questão do ponto de vista. Nisso, os enquadramentos e movimentos quase sempre tem apenas a função descritiva da ação. Belos e banais. Até mesmo há alguns planos sequência para explicitar isso como quando Michael sai do seu quarto para buscar gelo no corredor.

Entretanto, quando Lisa entra no filme, a câmera passa a ser mais poética. Os diretores fazem enquadramentos mais apurados e repletos de significado – principalmente os closes fechadíssimos na expressão de Michael enquanto ele admira Lisa com olhares que pulsam paixão e vida. É realmente muito belo poder observar essa alma que encarna os bonequinhos do filme. A movimentação dos personagens também passa a compor ainda mais a narrativa. Com Michael ficando menos corcunda e carrancudo ou nos gestos muito contidos, defensivos e inseguros de Lisa.

Também é inteligente o modo que os dois trabalham com a ironia presente no texto de Kaufman. Além da profissão de Michael ser completamente o avesso de quem ele é e o motivo da viagem para Cincinnati, me encanta a escolha do encontro da nova paixão da vida do protagonista ser logo em um hotel. Veja, a escolha é funcional, mas certamente confere uma metáfora excelente, afinal um hotel é, por natureza, um local bem impessoal, sem características verdadeiramente autenticas ou próprias das pessoas que transitam por ele. É um lugar constante, repetitivo que segue padrões e rotina em diversos quartos idênticos. Ou seja, nada diferente do modo que Michael vê as pessoas ao seu redor. Um lugar tão descartável quanto os outros. Porém, logo no meio do padrão, surge Lisa! Por essa interpretação, novamente, o nome do filme, Anomalisa, se torna ainda mais relevante. Aliás, com uma aliteração é fácil tirar uma Mona Lisa dentro deste título. Novamente, mais um acerto para a mente perspicaz de Kaufman ao definir essa áurea de fascinação na figura de Lisa.

Para completar, os dois diretores ainda utilizam a fotografia do filme à favor da narrativa. Seguindo a escola clássica da iluminação de três pontos – que sempre oferece um contraste belíssimo no jogo de luzes e sombras, os diretores escolhem formar o clímax do filme e a sua principal reviravolta com forte base na iluminação – o som é igualmente importante para a cena. É sem dúvida a cena mais poderosa do longa inteiro que merece muito ser analisada quando o filme sair de cartaz. Eu mesmo terei o prazer de escrever uma interpretação dela, mas acredito que a competência dos dois diretores é tão grande que será impossível não compreender o que ocorre.

Anomalisa realmente mereceu toda a atenção dedicada ao filme durante suas passagens em festivais pelo mundo inteiro. É um dos melhores filmes que vi em minha vida. Conta com o brilhantismo da técnica cinematográfica sempre à favor da narrativa trazida pelo roteiro tão delicado de Charlie Kaufman. O longa é muito relevante em sua mensagem poderosa. Tamanha é a força que acredito ser impossível não nos sentirmos um pouco mal ao reconhecermos como temos tanto em comum com Michael Stone, um personagem histórico. Além da história bela, há a animação de encher os olhos e a dublagem fantástica do trio que completa o elenco.

É um filme que passa voando de tão bem pensada que é a cadencia do ritmo e no progresso da história. Talvez, minha única ressalva, seja que há certa pressa para fechar o longa e o arco de Lisa, porém acredito que isso não chegue nem perto de tirar a relevância dessa obra-prima. Mas reconheço que não se trata de um filme comum. Pode ser que você o ache extremamente chato e insosso. É uma experiência bastante subjetiva, mas que possui tremendo valor fílmico.

Anomalisa marca o retorno de Charlie Kaufman. E também é um marco para o cinema que aborda o tema complexo da depressão.

Anomalisa (Anomalisa, EUA, 2015)
Direção: Charlie Kaufman e Duke Johnson
Roteiro: Charlie Kaufman
Elenco: David Thewlis, Jennifer Jason Leigh e Tom Noonan.
Duração: 90 minutos

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