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Crítica | Annette (2021)

Os amores que assombram Leos Carax.

por Fernando Campos
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Alguns amores assombram. Por mais que tentemos seguir em frente, por mais que outras pessoas surjam no caminho, certas paixões perseguem o nosso imaginário. Essas relações assombram por tudo que foi perdido, devido a futilidades, ou por um potencial de felicidade desperdiçado. Inclusive, alguns amores só mostram o seu tamanho real depois de terminados, como se fosse uma punição. No mar de possibilidades de Annette, no sentido real e figurado, Leos Carax expõe algumas de suas assombrações, artísticas ou pessoais, sendo um retorno do realizador após 9 anos de hiato.

A obra acompanha um casal aparentemente perfeito, Henry McHenry (Adam Driver), um provocante comediante de stand-up, e Ann (Marion Cotillard), uma belíssima cantora de ópera de renome internacional. Os dois vivem vidas glamurosas e atraem a atenção da mídia na contemporânea Los Angeles. No entanto, com o nascimento da filha Annette, suas vidas se transformam para sempre.

Assim como em outros filmes do diretor, é possível ler Annette sob várias óticas, sendo um filme de várias camadas, mas nenhuma delas rasa. Tal qual Holy Motors, que realiza uma homenagem ao trabalho de atuação, uma das análises plausíveis para o longa é o debate sobre o meio artístico atual. Contudo, aqui, Carax realiza uma crítica à classe. Ann só participa de produções pretensiosas e eletizada e Henry é o arquétipo do comediante medíocre de stand-up que vê em ofensas baratas uma espécie de humor. Aliás, o apreço da mídia e do público daquele universo diz muito sobre como Carax enxerga a audiência atualmente, cultuadores de arte rasa. Não à toa, em voice off nos créditos iniciais, ele mesmo pede diretamente para o público ficar quieto, prender a respiração e refletir sobre o que está assistindo.

Dentro dessa estratégia, há uma artificialidade intencional na direção de Annette. O talento, o sentimento e a vida de Henry e Ann são absolutamente artificiais, ressaltados pelos números musicais que soam como uma paródia da indústria hollywoodiana e seus romances sem sal, como o recente La La Land. O raro momento de beleza da primeira metade do filme está numa peculiar cena de sexo em que os protagonistas realizam o ato enquanto cantam, como uma provocação ao cinema industrial americano que, muitas vezes, trata o sexo como algo impróprio. O cúmulo da artificialidade ocorre quando nasce o bebê do casal e nos deparamos com um boneco, como se o filme negasse a presença de uma criança real para que não exista nenhum tipo de vínculo entre público e protagonistas, nos mantendo distantes a todo momento daquele universo. Isso pode ser sentido também nas escolhas da fotografia, sendo mais direta e priorizando planos gerais para não aproximar os personagens do público. Tecnicamente, o longa peca apenas na edição, com um ritmo que começa a pesar na virada do segundo para o terceiro ato.

Portanto, Annette se desenvolve como uma paródia que traz reflexões sobre a arte atual, centrada no culto à celebridades superficiais, até que a sequência final da película transforma completamente a experiência. Toda a artificialidade imposta até então é substituída por uma cena poderosa em que a bêbe Annette finalmente dialoga com o pai. A paródia dá lugar à dramaticidade. É como se os olhos do protagonista e do público fossem abertos ao mesmo tempo, revelando a dor de Henry por ter perdido o amor da esposa e da filha, o que não via enquanto estava envolvido em uma indústria de futilidades. Nesse momento, é fundamental reparar no trabalho de maquiagem, que transforma Adam Driver numa caricatura de Leos Carax, com o bigode e cabelos brancos. O filme, que parecia não se levar a sério, se transforma num desabafo do diretor, que parece lamentar o tempo perdido.

Para entender isso, é fundamental conhecer o contexto pessoal de Carax, que perdeu a esposa e grande musa, Yekaterina Golubeva, em 2011, aos 44 anos. após uma longa luta dela contra a depressão. Sob essa ótica, se encaixa a cena inicial de Annette, mostrando o diretor convidando Nastya Golubeva Carax, filha dos dois, para acompanhar o filme junto com ele. Talvez, a grande assombração do realizador seja a saudade da amada e a semelhança de Nastya com Yekaterina amplifica isso. Como Ann diz para Henry, “vou te assombrar através da minha filha”. Com isso, a escolha pelo gênero musical, que parecia voltado ao humor, se conecta com as tragédias operísticas e seus amores dilacerantes. Os planos abertos que pareciam afastar os personagens, na verdade, funcionavam como o palco de uma ópera.

Após um longo hiato, Annette pode representar uma tentativa de Carax de seguir em frente, transferindo suas dores para essa peça artística. A cena pós-créditos, em que ele caminha com balões abraçado em Nastya e junto da equipe de produção, indica isso. Carax está se permitindo amar intensamente de novo. Amar a filha, amar o legado da esposa e amar a arte. Que o diretor francês não nos deixe, novamente, tanto tempo esperando.

Annette – França, Alemanha, Bélgica, EUA, México, Japão e Suíça, 2021
Direção: Leos Carax
Roteiro: Ron Mael, Russel Mael
Elenco: Adam Driver, Marion Cotillard, Simon Helberg, Devyn McDowell, Ron Mael, Russell Mael, Christiane Tchouhan, Franziska Grohmann, Cindy Almouzni, Sinay Bavurhe, Rachel Mulowayi, Iman Europe, Danielle Withers, Lauren Evans, Natalie Mendoza, Kiko Mizuhara
Duração: 140 min

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