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Crítica | Anjos do Inferno (1930)

por Ritter Fan
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A história de bastidores de Anjos do Inferno (Hell’s Angels no original nome depois usado para batizar um esquadrão da Segunda Guerra e também a famosa – e criminosa – gangue de motociclistas, esta sem apóstrofe) é tão ou mais interessante que o próprio filme, que é, por si só, um grande feito técnico que consegue também ter boa ressonância dramática. Retratada em parte em O Aviador, cinebiografia de Howard Hughes por Martin Scorsese, é quase um milagre que o longa do magnata americano tenha sido efetivamente lançado e alcançado grande sucesso, apesar de não ter recobrado seus custos astronômicos para a época (mas não foi o filme mais caro de então, como o próprio Hughes gostava de dizer).

Para começar, dois diretores (Marshall Neilan e Edmund Goulding) passaram pela obra em sua fase silenciosa, com o então desconhecido James Whale (que viria a fazer Frankenstein, em 1931) sendo trazido na fase falada, mas com Hughes sempre assumindo para si a função de diretor geral e, claro, levando os créditos únicos pelo trabalho, o que foi uma enorme injustiça. Mas que fases são essas, alguém pode perguntar? É que, com a produção iniciada entre 1926 e 1927 e a fotografia principal em outubro de 1927, sempre como filme mudo, eis que O Cantor de Jazz foi lançado, marcando a transição para os filmes falados. O que era esperado apenas como uma moda passageira que não iria “pegar”, logo fez Hollywood pegar fogo, com centenas de produções e artistas afetados diretamente e, claro, o obsessivo Hughes não poderia ficar atrás. Portanto, mesmo com um ano e meio de produção a todo vapor, ele ordenou que seu filme fosse transformado em falado, o que de imediato levou à demissão da atriz principal, a norueguesa Greta Nissen, em razão de seu forte sotaque nativo que a impedia de passar como uma aristocrata britânica. Em seu lugar, a completamente inexperiente Jean Harlow, então com apenas 18 anos, foi trazida para as filmagens, o que exigiu semanas de treinamento que só atrasaram tudo. Além disso, o já citado Whale foi contratado para dirigir as sequências de diálogo, o que levou o roteiro de Neilan a ser reescrito por Joseph Moncure March, isso em plena produção, diga-se de passagem.

Some-se a isso a quase loucura de Hughes de ordenar takes e mais takes seguidos, às vezes às centenas, para as mais diversas e complicadas sequências, além de ele impor extrema complexidade em sequências aéreas, uma delas tão impossível que seu consultor se recusou a proceder, levando o próprio Hughes a pilotar o avião, somente para ele próprio sofrer um acidente grave que, claro, causou mais problemas para a produção e que contribuiu, depois, para sua mítica reclusão. E isso porque nem mencionei as mortes no set em razão do perigo das filmagens e da falta de segurança geral pelo descaso autoritário do magnata. Só para se ter uma ideia de passagem temporal, James Whale, durante os intervalos na produção do épico de Hughes, produziu, dirigiu e lançou Journey’s End no cinema – seu primeiro longa creditado – mais de um mês antes da première novayorkina de Anjos do Inferno.

Por muito menos, outras produções ou pararam completamente ou resultaram em verdadeiros desastres cinematográficos. Mas Hughes perseverou – o fato de ele ser multimilionário e obsessivo ajudou, claro – e Anjos do Inferno ganhou aclamação e tornou-se um dos primeiros grandes épicos falados, um dos longas mais tecnicamente complexos da época que, além de ter utilizado cores para pintar o celuloide, também contem uma das primeiras sequências integralmente em cores, por acaso o único registro assim de Jean Harlow.

Em termos de premissa básica, o longa lembra muito Asas, o primeiro ganhador do Oscar de Melhor Filme: dois irmãos britânicos bem diferentes, mas apaixonados pela mesma mulher, alistam-se como pilotos na Royal Flying Corps (RFC, que antecedeu a RAF) e vão lutar na Primeira Guerra Mundial, com a mulher que eles amam também partindo para o fronte, tudo servindo de pano de fundo para sensacionais e variados combates aéreos. O desenvolvimento da história é substancialmente diferente do famoso filme de William A. Wellman, mas o espírito patriótico, os atos heroicos, as injustiças e as mortes que podemos aguardar de obras desse naipe estão todos lá, com a duração sendo marcadamente dividida em duas partes separadas por um interlúdio, a primeira delas ainda na Inglaterra e, a segunda, no fronte francês.

Na primeira metade, a construção das personalidades de Monte (Ben Lyon) e Roy Rutledge (James Hall) é trabalhada de maneira exageradamente episódica, como “melhores momentos” da vida dos dois irmãos opostos em tudo, com Monte sendo charmoso, atirado e irresponsável, mas covarde, enquanto Roy é tímido, comedido e seguidor de regras, além de corajoso, com a bela Helen (Harlow) sendo a paixão de Roy que, claro, só tem olhos para Monte. Felizmente, depois que a primeira meia hora de contextualização atravancada acaba, mas que conta com uma cena de duelo que conversa bem com o epílogo trágico, o longa nos brinda primeiro com a cena à cores em um suntuoso baile repleto de extras que deve ter sido uma enorme dor de cabeça filmar e que antecede uma absolutamente incrível sequência de ataque de um Zeppelin alemão à Londres. O que é fora de série é que o ataque é eminentemente contado a partir do ponto de vista alemão, a partir do personagem Karl (amigo dos irmãos Rutledge, que vivia em Londres – vivido por John Darrow), oferecendo uma abordagem extremamente detalhada da forma como essa ameaça aérea operava na época ao ponto de quase parecer um documentário, mas um documentário hipnotizante e imersivo ao ponto de, quanto tudo acaba – abrindo espaço para o interlúdio musical sobre tela preta – o espectador só tem a lamentar pelo filme inteiro não ser focado nessa batalha.

Mas felizmente não é, pois a segunda metade, que lida com os irmãos na França tendo a missão de bombardear um depósito de munição alemão usando um avião inimigo capturado, retorna ao tema da paixão dos dois por Helen que, por sua vez, quer viver a vida dela sem regras e sem conexões amorosas estáticas e, também, à covardia de Monte que primeiro se recusa a participar da patrulha noturna e, depois, atira-se na missão em questão. E, claro, tudo é mais uma vez desculpa para o show técnico principal, com o Circo Voador do temido e mítico Barão Manfred von Richthofen (Wilhelm von Brincken), mais conhecido como Barão Vermelho, atacando o bombardeiro pilotado pelos irmãos, somente para que a RFC chegue em peso em seguida. O que segue são incríveis tomadas aéreas que um literal batalhão de pilotos da Primeira Guerra contratado por Hughes encena, transmitindo um grau de verossimilhança de se tirar o chapéu, por vezes muito superior ao trabalho mais, digamos, comedido em Asas.

Anjos do Inferno foi um literal inferno para acabar e seu legado para a Sétima Arte é inestimável, ainda que ele, ironicamente, seja pouco lembrado em conversas de cinéfilos, talvez por ter sido abafado pela fama do próprio Hughes, um personagem realmente maior que a vida. Seja como for, o épico de guerra que teve quatro diretores e dois roteiristas, além da substituição de sua estrela, a conversão de filme mudo em falado, além de diversos acidentes e mortes durante a produção é um filme verdadeiramente inesquecível seja por que ângulo ele seja analisado.

Anjos do Inferno (Hell’s Angels, EUA – 1930)
Direção: Howard Hughes, Edmund Goulding (não creditado), James Whale (não creditado)
Roteiro: Marshall Neilan, Joseph Moncure March
Elenco: Ben Lyon, James Hall, Jean Harlow, John Darrow, Lucien Prival, Frank Clarke, Roy Wilson, Douglas Gilmore, Jane Winton, Evelyn Hall, William B. Davidson, Wyndham Standing, Lena Melana, Marian Marsh, Carl von Haartman, Ferdinand Schumann-Heink, Stephen Carr, Thomas Carr, Rupert Syme Macalister, J. Granville-Davis, Hans Joby, Pat Somerset, Wilhelm von Brincken
Duração: 127 min.

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