Amor, amizade, sexo, relacionamentos interpessoais, dentre outros tópicos temáticos. Ao longo de seu primeiro ciclo, exibido entre 1998 e 2004, Sex and The City revolucionou, ao lado da ótima Família Soprano, a maneira como os comportamentos humanos eram representados na dinâmica ficcional televisiva. Marco histórico dos primeiros passos da HBO, as séries demonstraram, com roteiros coesos e densos em meio aos acontecimentos aparentemente banais, situações de pessoas comuns vivendo as suas existências com as inseguranças, desafios e demais sentimentos próprios aos conflitos habituais na convivência com o “outro”. Após dois filmes, um derivado e polêmicas sobre questões de bastidores envolvendo as protagonistas, o universo de novaiorquinas brancas e bem-sucedidas parecia não ter mais para onde ir, fechando-se no arcabouço das memórias em torno de um programa de entretenimento que causou furor no passado, mas não dialogava mais com questões do presente, demasiadamente transformadas.
A sensação era essa quando tivemos a estreia de And Just Like That: Um Novo Capítulo de Sex and The City. A grande questão era: o que as personagens de Sarah Jessica Parker, Cynthia Nixon e Kristin Davis ainda tem para dizer? Sem o fenômeno Samantha, interpretada por Kim Kattrall, figura ficcional que era a grande sensação da produção, o retorno deste universo para a contemporaneidade correu muitos riscos, no entanto, conseguiu dar conta do recado e se manter mais atual do que nunca. Sem recorrer aos erros de antigamente, próprios de seu tempo também, convenhamos, os realizadores deste reencontro trouxeram os ajustes necessários para que as aventuras amorosas, profissionais e sexuais das personagens fizessem sentido numa era de discussões ferrenhas sobre identidade de gênero, democracia racial, dentre outros importantes tópicos temáticos. Não dava mais para brincar de reflexão sobre sexualidade no território nova-iorquino com coadjuvantes homossexuais estereotipados, afro-americanos como figurantes.
Agora, vivenciamos também a cultura dos nudes, as paqueras por aplicativos de encontros, isto é, o ser humano como mercadoria na vitrine dos desejos sexuais. Ademais, após uma angustiante jornada de opressão social diante da onda de extremismos oriundos das polarizações políticas não apenas em países do continente americano, mas também em outras partes de nosso mundo global, Sex and The City precisava acertar no tom para se manter relevante. E foi assim que gozou dos privilégios de possuir uma equipe de realizadores antenada com as demandas contemporâneas, nos entregando uma excelente primeira temporada de retorno, aprovada para este segundo ano que começou escorregadio, perigosamente pouco interessante, mas que antes da metade conseguiu se erguer e apresentar momentos brilhantes, garantindo assim a sua terceira temporada para 2024, pois segundo as declarações dos executivos da HBO, o programa tem sido o principal conteúdo acessado nas plataformas de streaming, por isso, requer novos episódios, tendo em vista continuar radiografando estes personagens esféricos.
Carrie Bradshaw (Sarah Jessica Parker), nossa eterna rainha do drama, continua a sua jornada de descobertas na maturidade. Depois da experiência com o podcast no primeiro ano de And Just Like That: Um Novo Capítulo de Sex and The City, a protagonista agora atravessa uma caminhada de reflexões sobre si mesma. Big (Chris Nott), o grande amor de sua vida, teria sido um retumbante erro? Esta é uma pergunta que ela faz constantemente, após a chegada de Aidan (John Corbett), outro grande relacionamento do primeiro ciclo da série. Divorciado, o antigo namorado chega com força total para realinhar as expectativas da escritora. O luto ainda é parte de seu cotidiano na primeira metade da temporada. Ela é designada por sua editora para ser a narradora do audiobook do último livro, focado nas transformações de pessoas que passam pela dor da perda de alguém. Carrie coleciona, com humor, momentos constrangedoras com os homens que se propõe a sair, tentativas fracassadas que a fazem compreender que se relacionar sexualmente, bem como se entregar sentimentalmente após tantos anos fora do circuito será uma missão desafiadora. Depois de um e-mail para Aidan, as coisas mudam. Tudo parece ser brilhante demais, até novos conflitos se deflagrarem, em especial, a birra do filho mais novo, jovem que não aceita a separação dos pais e comete alguns atos que beiram ao trágico. Assim, dividido entre o complicado amor de Carrie e a necessidade de acompanhar os seus filhos, Aidan define alguns limites que podem não render um bom novo relacionamento para ambos.
Charlotte (Kristin Davis) sempre foi o equilíbrio de Sex and The City. Ela encarou o estilo mais conservador, focada no sonho de ter um bom casamento e uma família. Sem elementos de transgressão, mais recorrentes em Miranda e Samantha, a personagem nos relevou, em diversas ocasiões, a vida de mulheres que desejavam o tradicional. Neste esquema, reforçou a importância de respeitarmos as escolhas de cada um, respeitando os anseios alheios. Ainda bem casada com Harry Goldenblatt (Evan Handler), vive um cotidiano de dona de casa que muda do meio da temporada para o final. Fora do mercado de trabalho por longos anos, ela envia o seu perfil profissional para uma galeria e consegue espaço para atuar novamente em sua área. Agora, a família precisará lidar com as suas escolhas, tanto as filhas quanto o marido, pois a permanência em horário comercial a tira dos afazeres diários domiciliares, transformando as relações. Cansada, ela decide que as filhas e o esposo também precisam ajudar nas demandas cotidianas, sendo importante sair de suas respectivas zonas de conforto. No terreno da sexualidade, explora novas experiências com Harry e ainda precisa compreender que o avanço da adolescência para a fase adulta traz ebulição para os hormônios de sua filha mais velha, sendo importante o acompanhamento e a orientação para a jovem diante das descobertas sexuais. É um tema embaraçoso, mas necessário tanto para Charlotte quanto para o público que contempla uma questão necessária: a educação sexual dentro de casa.
Miranda Hobbes (Cynthia Nixon) também passa por grandes transformações. A atriz que a interpreta, além de produtora executiva, assina a direção de alguns dos melhores episódios. Ao longo da temporada, ela sai do relacionamento com Che, tóxico para ambas, para lidar com o retorno de Los Angeles para Nova York. De volta ao ambiente corporativo do Direito, Miranda ocupa inicialmente um cargo de estagiária, mesmo tendo mais de três décadas de experiência num setor específico de sua área de atuação. Não demora, ela se destaca, assume o lugar de chefia enquanto a sua gestora tira licença-maternidade, pavimentando assim um caminho de novidades com muitas incertezas. Em suas reflexões, a advogada precisa lidar com a forma como encerra os seus relacionamentos, o que a leva a tentar se reaproximar de Steve (David Eigenberg), um homem ainda magoado pela maneira como as coisas se desenrolaram na temporada anterior. Sua jornada é conduzida por muitas lágrimas, dores, mas também descobertas que a permitem acreditar que histórias melhores virão e que a sua caminhada ainda lhe possibilita sensações nunca antes experimentadas. Novos amores, maiores chances de atuação profissional e um melhor contato com o filho estão em sua agenda como mãe, advogada e mulher. São vários papeis para desempenhar, mas a personagem parece aberta aos desafios.
Seema (Sarita Choudhury) tinha tudo para ser uma personagem antipática. Em alguns momentos, as suas inseguranças e dilemas parecem banais, mas não são exatamente assim. Após conhecer Carrie na primeira temporada, sendo útil no apoio enquanto a protagonista vivenciava o ponto alto do luto pela morte de Mr. Big, ela se estabeleceu como uma das apostas da série em retratar mulheres de outras nacionalidades, uma realidade do multiculturalismo que demarca o nosso mundo globalizado, algo não abordado adequadamente no primeiro ciclo de temporadas de Sex and The City. Impossível conceber um ambiente nova-iorquino realista cheio de imigrantes sem destacar a existência de personagens que contemplem outras etnias. Ao longo dos 11 episódios, Seema continua atuando como uma mulher poderosa no ramo imobiliário, agora profundamente apaixonada por seu novo cliente, Franklin (Ivan Hernandez), um cineasta com carreira em contínua ascensão, mestre dos filmes de ação. Ele é uma cobiçada figura no campo do entretenimento e, por ser muito bonito, talentoso e desejado, instaura um painel de inseguranças na trajetória da personagem que acredita, na atualidade, ter a confiança necessária para dominar todas as circunstâncias no bojo dos relacionamentos que gravitam em torno de sua existência. Diante destes conflitos, ela precisa se reinventar.
Lisa Todd (Nicole Ari Parker) continua com o seu equilibrado casamento com Herbert Wexley (Christopher Jackson), ambos bem-sucedidos em suas atuações profissionais, ameaçados entre um ponto e outro da temporada por circunstâncias comuns aos casais que precisam conciliar trabalho, vida pessoal e cuidados com os filhos. Para manter a ideia muito comum nas séries estadunidenses, com respingos em produções ficcionais ao redor do planeta, temos a rápida presença da sogra, a mãe de Herbert, uma senhora conservadora que batalha se propõe a criticar a esposa do filho o tempo inteiro, minando seguranças alheias e causando desconforto em suas breves passagens. A dupla precisa lidar também com o despertar da sexualidade do filho mais velho, um rapaz inteligente e sagaz, mas disperso com a namoradinha espevitada que parece tirá-lo dos caminhos trilhados com firmeza pelos pais. Ademais, uma gravidez inesperada surge e Lisa adentra pavimenta um caminho de culpa ao sofrer um aborto espontâneo, se questionando sobre ter desejado, num determinado momento, interromper o processo, pois a sua jornada como diretora de documentários está no auge e convites para programas em série, de ampla visibilidade, poderiam ser ameaçados pela chegada de uma nova criança. Velhos dilemas, ainda muito atuais, numa interessante discussão sobre um assunto que também é tabu e rende muitos debates. A abordagem é sutil, mas poderosa.
Dra. Nya Wallace (Karen Pittman) tem uma virada de chave importante ao longo da temporada. Com o marido, músico, morando fora, ela precisa lidar com a saudade e a solidão, bem como os seus desejos, pois costumava ter uma vida sexual em pleno exercício. As surpresas começam a surgir após perceber o companheiro se mantendo distante, sem interessem em chamadas de vídeo para dialogar. A decepção culmina com a descoberta do relacionamento do esposo com uma das jovens que integram a sua banda, algo que termina em gravidez, com direito ao convite para o chá de bebê, ofensivo e tratado pela personagem como um abuso. Assim, a sua vida profissional avança vertiginosamente, ao adentrar em espaços do Direito antes sequer imaginado para uma mulher afro-americana, mudança que traz um tom revigorante para a professora universitária, mas ao mesmo tempo revela a solidão de mulheres bem-sucedidas em nosso cenário machista, com homens ameaçados por mulheres independentes. Até o episódio final, Nya experimenta o gosto amargo desta situação, mas com otimismo e sem romantismo utópico, os membros da sala de roteiristas inserem uma nova aventura, delineada mais intensamente nos momentos finais, tendo em vista trazer otimismo para um dos melhores novos personagens da nova empreitada narrativa de And Just Like That: Um Novo Capítulo de Sex and The City.
Sobre a representação de personagens LGBTQIAP+, a série tem buscado ampliar as discussões com situações pertinentes ao universo em questão. A sensação que temos, nalguns momentos, é que os dramaturgos da sala de roteiristas vivenciam o cotidiano dos homens gays que acessam diariamente aplicativos de encontros do tipo Grindr. Anthony Marantino (Mario Cantone) é quem centraliza estas questões ao longo da segunda metade da temporada. Após conhecer um poeta italiano situado na cidade, ele tenta bloquear os seus sentimentos e manter o vínculo apenas na seara do desejo sexual, passeando por contradições no que concerne aos posicionamentos sexuais. Nunca foi passivo, considera isso como algo menor, uma postura que não se justifica para alguém que sempre gozou dos privilégios de sua liberdade sexual. Ainda preso ao casamento indefinido com Stanford, personagem interpretado pelo falecido Willie Garson, aqui não finalizado, mas retratado como alguém que mudou de vida e foi para o Japão trabalhar, Anthony recebe próximo ao final a sua “carta de alforria” e decide se entregar ao escritor apaixonado, mesmo com todos os seus paradoxos que demandam acompanhamento terapêutico. Esta perspectiva machista, mesmo paradoxal, é muito comum na existência dos homens gays contemporâneos. Basta entrar no mencionado aplicativo para ver perfis que exigem contato, nem que seja apenas para sexo, com caras “posturados”, “sigilosos”, “discretos” ou “fora do meio”.
Che Diaz (Sara Ramírez) é também um personagem que passa por grandes transformações. Vive cotidianamente numa redoma de defesa contra pessoas transfóbicas, mas também não ajuda a se manter agradável em cena, numa demonstração constante de acidez, oriunda de suas inseguranças e medos. É um personagem que precisa constantemente ensinar aos demais a maneira como devemos lidar com relacionamentos diante de pessoas trans. O uso adequado dos pronomes, a maneira não ofensiva de estabelecer questionamentos, dentre outras coisas que cansam alguém que precisa esclarecer o tempo inteiro as suas escolhas. Depois de uma empreitada sem o sucesso esperado em Los Angeles, esta figura ficcional precisa baixar a sua guarda, recomeçar os seus projetos e entender a si mesma como alguém que precisa de compreensão, mas também carece de mais paciência para lidar com as pessoas ao seu redor. Quem vos escreve, por exemplo, é parte da sigla na qual Che se insere, mas ainda assim, possui dúvidas para lidar com um mundo que rapidamente mudou da pejorativa e estranha sigla GLS para um mundo de novos pronomes e orientações sexuais fora do que a nossa sociedade conservadora estabeleceu como padrão. Sem didatismos que atrapalham o entretenimento, os realizadores implantaram, organicamente, tais discussões, enriquecendo o texto e trazendo para a ficção uma necessária abordagem sobre este tema que deve ser respeitado, mesmo que nós ainda não possamos compreender cabalmente as suas concepções.
E assim, por meio de numerosas aventuras no cotidiano agitado de uma das maiores metrópoles do mundo, And Just Like That: Um Novo Capítulo de Sex and The City emociona com o seu final. Os diálogos estão incríveis, as personagens inspiradoras, os ganchos para o ano seguinte se fixam devidamente, tendo ainda uma breve, mas eficiente participação de Samantha Jones. Numa ligação para Carrie, ela se desculpa pelos imprevistos na viagem que tinha agendado para visitar a amiga em sua despedida do apartamento que demarcou longas nestas duas décadas. É uma aparição breve e não garante a reconciliação entre Kim Kattrall e Sarah Jessica Parker, atrizes que foram parte de uma polêmica pública acerca de desentendimento nos bastidores dos filmes e da primeira etapa da série, mas ainda assim, é um momento de saudosismo para os fãs. Cabe agora aos executivos organizarem o esquema para tentar trazer de vez a relações públicas para o programa, uma garantia de continuidade, maiores audiências e situações sobre os desejos sexuais das mulheres mais velhas, ainda um tabu em nossa sociedade, sempre a condenar as pessoas que conseguem passar dos 50 e chegar aos 60 anos de idade e ainda vivenciar as suas experiências com intensidade, sem o isolamento de um mundo focado nas belezas da juventude.
E, para finalizar, a estratégia de desenvolvimento de 10 a 11 episódios por temporada, uma escolha assertiva dos realizadores, assegura para os personagens um desenrolar de situações dramáticas sem enrolações, enxugando o conteúdo do programa, evidenciando o que de fato é relevante, sem causar cansaço, tampouco desfavorecer a evolução de suas figuras ficcionais com momentos vazios apenas para preenchimento do tempo, muitas vezes programado para se alongar demais, algo que detona a qualidade dramática e recai em excessos. Não que seja obrigatório para compreender o desenvolvimento de algumas situações ao longo da temporada, mas é importante ressaltar que algumas cenas possuem paralelos com o primeiro ciclo da produção, exibido entre 1998 e 2004, interessante circuito de intertextualidade que aproximam ainda mais os elementos que compõem os novos episódios: quando Samantha comenta o seu sotaque e diz ser Isabelle, temos uma retomada da sexta temporada, quando ela rouba o acesso de uma poderosa cliente de um clube com piscinas e leva as garotas para curtir o dia ensolarado, com um divertido sotaque britânico. A situação acaba numa divertida expulsão do estabelecimento. Ao chegar no apartamento de Carrie e lançar pequenas pedras na janela para chamar a atenção, Aidan traça um diálogo com o que a escritora fez ao clamar por desculpas após a situação de traição com Big na quarta temporada. A casa de campo de Aidan, do mesmo período, é retomada também, numa nova perspectiva, dentre outras diversas associações que funcionam ainda melhor para quem conhece este universo narrativo fascinante.
Vida longa para And Just Like That: Um Novo Capítulo de Sex and The City.
And Just Like That… – Um Novo Capítulo de Sex and The City: 2ª Temporada (And Just Like That/EUA, 09 de dezembro de 2021 a 03 de fevereiro de 2022)
Criador: Michael Patrick King
Direção: Michael Patrick King, Nisha Ganatra, Gillian Robespierre, Anu Valia, Cynthia Nixon
Roteiro: Elisa Zuritsky, Samantha Irby, Julie Rottenberg, Michael Patrick King
Elenco: Sarah Jessica Parker, Kim Kristin Davis, Cynthia Nixon, Chris Noth, David Eigenberg, Willie Garson, Mario Cantone, Karen Pittman, Nicole Ari Parker, Bridget Moynohan, Neall Cunningham, Cathy Ang, Sara Ramirez, Alexa Swinton, Sarita Choudhury, Ivan Hernandez, Kim Cattrall
Duração: 11 episódios (40 min).