Eu quero começar esse texto dizendo que o meu lado emotivo e fanático por Doctor Who daria 5 nonilhões de estrelas para a série (hehehe), por motivos que vou explicar mais compassadamente nos parágrafos a seguir. Já o meu lado crítico-chato, depois de uma batalha nível Dalek Supreme contra meu lado emotivo, conseguiu arrebatar meia estrela para si, culpando uma “certa estranheza” na finalização do telefilme: uma sequência de cortes secos, cenas mais abruptas após um bom equilíbrio de montagem em todo o filme e, então, o plongé no console da TARDIS para dar o grande final. Para o meu lado crítico-chato (e veja, essa é a única coisa que ele apontou como motivo para arrebatar meia estrela deste céu), tal finalização teve sabor anti-climático, o que o decepcionou um pouquinho. De resto, ambos os lados concordam plenamente e é daí que seguiremos com a crítica de An Adventure in Space and Time.
Em primeiro lugar, é importante ter em mente que An Adventure é um docudrama feito para a televisão, na esteira das comemorações de 50 anos de uma série – a série sobre a qual o filme narra o início. Pensando nisso, chegamos a um estágio muito particular sobre a produção e até de entendimento ou interpretação da obra, que ainda tem algo muito especial em si: foi feita para fãs. Por mais que seja verdade que qualquer indivíduo não-whovian possa chegar e assistir ao filme sem grandes problemas, é certo afirmar que sua recepção e entendimento será medíocre e plenamente prejudicada pela falta de conhecimento da série ali homenageada e referenciada em todos os seus detalhes. E esperneie os extremistas o quanto quiserem, mas Mark Gatiss fez uma escolha mais do que certa ao guiar o roteiro por esse caminho.
Se é um docudrama de homenagem ao cinquentenário de uma série ainda em exibição, a verdadeira preocupação do roteirista e toda a produção do filme deve ser, de fato, com os fãs e a própria série em sua mitologia e grandeza. É justo e faz todo o sentido que seja assim. Mark Gatiss toma essa premissa como norte e não faz feio, escrevendo uma história rica, bem humorada, com ótimas colocações de cenas de bastidores da série, e claro, abordando de maneira perfeitamente orgânica o próprio contexto de Doctor Who e o próprio título do filme.
Toda a projeção está centrada numa relação de tempo e espaço entre a espera e o acontecimento. Entre o encontro e a despedida. A de renovo em Doctor Who é capturada pelo autor ao traçar momentos chaves do início da série com a dor da despedida e as modificações que o tempo trouxe para todos, movendo corações e vidas, não só dos espectadores mas também dos que fazem a série acontecer. David Bradley (o Argus Filch da saga Harry Potter e o Salomon de Dinosaurs on a Spaceship, da 7ª Temporada) interpreta um excelente William Hartnell, com uma brilhante passagem de sua verão intragável e irritável no início do filme para um querido 1º Doutor ao final.
Apenas um escritor com muito conhecimento e amor pela série (Gatiss já falou diversas vezes que Doctor Who sempre foi a sua série favorita) poderia nos apresentar algo assim. A TARDIS é usada como máquina do tempo para a localização dos eventos narrados no filme, e o início da aventura tem lugar no último arco do 1º Doutor, The Tenth Planet, o arco em que os Cybermen aparecem pela primeira vez. Daí já temos uma forte ligação entre a pessoa do Doutor, tremendamente fraco durante todo o arco e do ator William Hartnell, já desfalecendo pela doença, errando um grande número de falas, irritado por não estar perto de seus amigos do início: a produtora Verity Lambert e os atores que interpretaram seus primeiros companions, Susan, Ian e Barbara.
Embora dê importância maior à série em si e aos seus realizadores, da equipe técnica ao elenco (vemos cenários e cenas verdadeiramente emocionante da produção dos seguintes arcos do 1º Doutor: An Unearthly Child, The Daleks, Marco Polo, The Reign of Terror, The Dalek Invasion of Earth, The Web Planet e The Tenth Planet), a história nos mostra os percalços da produção em seu início, tanto pelo fato de ter uma produtora (mulheres no comando ainda era uma novidade na ápoca) quanto pelo fato de ser uma série de vanguarda – e como tudo nessa área, contando com artistas extremamente criativos e com felizes acidentes de percurso, como a concepção do console da TARDIS, por exemplo.
Eu poderia escrever páginas e páginas sobre cada grande momento do filme, mas vou me conter. Destacarei, dentre a ótima trilha sonora, com destaque para a abertura do filme; a belíssima fotografia cheia de metáforas visuais, jogos de luz e sombra e ângulos dramáticos bem utilizados; a direção de arte plural, capaz de capturar os diversos momentos históricos e internos ao show; a ótima direção de Terry McDonough, que não teve que se preocupar muito com o elenco glorioso que tinha para guiar, e os figurinos muitíssimo bem pensados para a ocasião; a felicidade que tive ao ver praticamente todo o elenco principal e uma parte da equipe técnica retornar a Doctor Who, anos depois, para cameos que de valor inestimável. Imagino que deve ter sido uma grande emoção também para esses artistas verem a grandeza de algo que começou como um tapa-buraco na programação da BBC e que só deveria durar um ano chegar onde chegou.
Hoje, 50 anos depois, entendemos que as últimas palavras ditas pelo 10º Doutor e usadas por Gatiss (a emoção explodindo agora) para marcar o assumir de William Hartnell de que ele não poderia mais continuar no programa, é o lema de Doctor Who, uma série sobre a vida e suas aventuras no espaço e no tempo, que volta e meia nos faz chorar por não querermos nos afastar de nossos melhores momentos. E mesmo que olhemos para nós mesmos no futuro, vendo o resultado vitorioso daquilo para o que trabalhamos com amor e afinco, a gente não sabe ao certo quem (e o quê) é aquele resultado. Somos nós mesmos? É o nosso legado? Nem mesmo se considerarmos o fato de que o nosso substituto tenha nossa aprovação e que não vejamos mais ninguém à nossa altura para estar no mesmo lugar, há algo comum entre nós e os Time Lords: depois de uma bem sucedida aventura no tempo e no espaço, nós nunca queremos ir embora.
An Adventure in Space and Time (UK, 2013)
Direção: Terry McDonough
Roteiro: Mark Gatiss
Elenco: David Bradley, Ross Gurney-Randall, Roger May, Sam Hoare, Charlie Kemp, Brian Cox, William Russell, Jeff Rawle, Andrew Woodall, Jessica Raine, Jemma Powell, Lesley Manville, Sacha Dhawan, Jamie Glover, Claudia Grant
Duração: 90 minutos