Quando falamos de Cinema Negro e produzido por mulheres na atualidade, nos remetemos à obra Um Dia com Jerusa, da cineasta Viviane Ferreira. Essa obra, por muito tempo, ocupou o posto de primeiro filme que apresenta um cinema de representatividade negra em sua composição, o roteiro e a direção são assinados por ela, mulher negra e ativista. Mas vivemos tempos de revisionismos e temos que buscar atribuir esse título de pioneirismo a outra mulher negra, que já havia realizado essa façanha. Nos referimos à cineasta Adélia Sampaio, que em 1984 havia produzido e dirigido o primeiro longa-metragem realizado por uma mulher negra na história do audiovisual brasileiro.
É comum em nossa estrutura histórica silenciarmos os feitos e a atuação de alguns atores sociais. Estamos acostumados com um padrão patriarcal e elitista que silencia diferentes grupos considerados minorias em representatividade e formação intelectual, como no caso das realizadoras. Nos acostumados a ver esses grupos sempre à margem de uma sociedade misógina que cria arquétipos para representá-los. São esses os aspectos que foram escolhidos pela diretora Adélia Sampaio em seu primeiro longa, Amor Maldito. Ela se baseou em um caso que recebia destaque nas páginas de jornais do período, acompanhou o julgamento da ré e teve acesso aos autos do processo.
O roteiro foi escrito por José Louzeiro, um renomado jornalista, escritor e roteirista. Das páginas policiais para a tela do cinema, essa história vai emergir para apresentar não só os dramas das personagens, mas uma cineasta que já havia escolhido traçar seu caminho na sétima arte. Adélia, vem de uma família simples que se confunde com a história de muitas mulheres que pertencem ao nosso imaginário social. Filha de uma empregada doméstica que morava com suas filhas na casa da patroa, em São Paulo, foi separada da mãe aos nove anos, após ter se mudado para o Rio de Janeiro. Ficou em um asilo em Minas Gerais porque sua mãe não podia sustentá-la. Só aos treze anos reencontrou sua mãe e sua irmã, com quem foi morar. Esse reencontro possibilitou a abertura de uma nova perspectiva: sua irmã trabalhava em uma distribuidora de filmes russos, onde teve sua primeira experiência cinematográfica com o filme Ivan, o Terrível de Serguei Eisenstein. Essa vivência lhe trouxe novas perspectivas, foi trabalhar como telefonista na distribuidora brasileira Difilm, ligada aos Cinemanovistas. Essa é a grande abertura e escola que vai frequentar, e se formar como cineasta. Aprendeu com diversos realizadores do período, onde exerceu funções de continuísta, câmera, montadora e produtora. Estreou como diretora em 1979, com o curta-metragem Denúncia Vazia e, em 1984, lançou seu primeiro longa.
O filme foi realizado a partir de um projeto colaborativo entre atores e equipe técnica. Não conseguiu financiamento da Embrafilme, por abordar uma temática homossexual que, para os padrões da época, não se enquadrava no modelo cultural defendido pelo regime militar. O elenco era formado por artistas experientes no meio audiovisual, atores que haviam atuado no teatro, televisão e cinema. Lançado em São Paulo, recebeu ótimas críticas, podemos destacar a análise de Leon Kacoff ao material, o que rendeu uma maior abertura para sua projeção em salas de cinema. Mesmo tendo sua classificação para maiores de 18 anos, o filme consegue se custear e atingir um bom público no período.
A história de amor entre duas mulheres é o grande tema da película. A narrativa vai focar nas consequências dessa relação que tem um fim trágico. O suicídio de Suely (Wilma Dias), casada com Fernanda (Monique Lafond), essa relação se iniciou com um tom de rejeição familiar. Suely, foi expulsa de casa por seu pai, pastor evangélico (Emiliano Queiroz), que tem uma relação conturbada com sua filha e com o sonho dela em se tornar atriz de televisão. O estopim desse rompimento veio através da vitória em um concurso de Miss. A jovem então vê a possibilidade de realizar seus sonhos, rompendo com sua família. Deslumbrada, acredita nas possibilidades de realização de seus sonhos. Esses aspectos são apresentados com planos abertos, evidenciando todas as possibilidades daquele momento. Mas o enredo começa a ganhar densidade quando Fernanda e Suely resolvem oficializar sua relação com uma cerimônia de casamento entre amigos. A tensão apresentada nessa relação conturbada interna e socialmente vai ganhando mais tensões e conflitos. Fernanda é acusada de corromper e assassinar seu grande amor. Tem-se então o auge da tensão da película, justificando o uso de planos médios e closes para demonstrar as angústias e a opressão que a sociedade exerce sobre os grupos à margem.
O julgamento nos faz observar que alguns grupos sociais mantêm seus discursos e posturas independente do tempo histórico. Essa camada da obra se destaca com um discurso religioso, moralizante, misógino e sexista, onde a violência verbal inflamada pelo pai e o advogado de acusação, que usa o tribunal como púlpito de disseminação natural do patriarcado. Esse discurso condena o direito ao desejo sexual e ao corpo; negando também a humanidade das mulheres, que são consideradas fracas e condenáveis. São cenas claustrofóbicas que causam grande angústia aos espectadores. Com um uso intenso de planos fechados, toda essa tensão vai ganhando uma carga dramática que nos faz refletir intensamente no poder aprisionador desse discurso social.
O tempo fílmico vai sendo explorado e as personagens consolidam um debate cada vez mais condenável em torno de escolhas e condutas consideradas abomináveis, apresentadas nesse extenso momento de desespero e tensão. Nos deparamos com elementos analíticos que encaminham essas mulheres para o exercício de liberdades e escolhas sobre seus corpos, vivência de seus sentimentos e desejos. São esses os grandes elementos condenáveis nas personagens principais. O recurso técnico utilizado para fundamentar essa observação é quando Fernanda declara que é ‘uma mulher assumida’, olhando diretamente para a câmera. Esse recurso tem um efeito de empoderamento da personagem e autoafirmação de uma mulher branca e homossexual. Uma cena que tem um forte impacto no observador e na condução do desfecho do julgamento.
São elementos como esses que nos conduzem a uma reflexão poderosa do trabalho de Adélia Sampaio, uma mulher, diretora negra, que aborda no cinema a homossexualidade feminina e branca. O material analisado nos encaminha para uma reflexão de grande relevância na atualidade sobre sexismo, empatia, empoderamento e sororidade, termos e significados que precisam ser disseminados para que o lugar de fala e ocupação dos espaços do feminino e feminismo rompam com a tradição de um discurso e passado de dominação. Dessa maneira, Amor Maldito nos possibilita amplas pautas de debates e aprendizados, tão essenciais para construção de espaços onde o gênero, o silenciamento e o patriarcalismo não nos impeçam de ocupar espaços de atuação e lugar de um feminino plural.
Amor Maldito (Brasil, 1984)
Direção: Adélia Sampaio
Roteiro: José Louzeiro
Elenco: Monique Lafond, Wilma Dias, Emiliano Queiroz, Neuza Amaral, Sérgio Ascoly, Jalusa Barcelos, Catalina Bonakie, Octacílio Coutinho, Isolda Cresta, Tony Ferreira, Maria Letícia, Julia Miranda, Nildo Parente, Mário Petráglia, Vinícius Salvatori
Duração: 76 min.