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Confesso que não li o romance de Neil Gaiman e meu interesse por American Gods passou exclusivamente pela presença de Bryan Fuller, showrunner da fantástica adaptação televisiva de Hannibal – uma das minhas séries favoritas. Desse modo, já aviso que não utilizarei parâmetros comparativos com o material original, analisando esta primeira temporada com base no que ela se propõe enquanto série e somente série. Afinal, a proposta da original da Amazon Prime Video – como de qualquer outra adaptação, na verdade – parte de um pressuposto de traduzir as linhas literárias de forma atrativa no audiovisual para atrair novos consumidores do que promete ser uma franquia, mas com muita personalidade estilística.
Nesse sentido, Fuller foi a pessoa certa a ser chamada. Sua identidade visual característica de câmeras lentas, valorização de planos detalhes, montagem surrealista e bom uso da trilha sonora, casam-se perfeitamente com a necessidade de uma introdução detalhada e, ao mesmo tempo, visceral da premissa, tanto conceitualmente, quanto tematicamente. O grande acerto do showrunner é saber desenvolver o arco de seu protagonista, o ex-presidiário Shadow Moon (Ricky Whittle), conforme apresenta ludicamente o universo da mescla entre mitologias (os deuses clássicos com deuses originais criados a partir de elementos modernos como a mídia e a internet) ao seu redor, através de ótimas interações com o sarcástico e canastrão Mr. Wednesday (Ian McShane).
Há um senso de deslumbramento muito genuíno a cada nova descoberta de conceito, capítulo após capítulo, que nos prende facilmente por ser tratado com muita naturalidade de dentro para fora – é como se o mundo que humanos e deuses compartilham já fossem uma rotina –, e de fora para dentro (flashbacks ou cenas em outras temporalidades narrativas), com a série pincelando algum recorte temático relevante a ser discutido quando apresenta um novo ser mitológico. O debate político presente é bem amplo, indo desde a questão carcerária, luta de classes e racismo que afetam o personagem principal, até misoginia, homofobia, armamentismo, imigração e apropriação cultural da origem americana.
Nenhuma questão chega a ser exatamente colocada como pauta principal e isolada nos episódios, estando mais para o pacote desse “road-movie” confuso e intrigante que é a primeira temporada. A busca por um conflito fixo talvez seja o maior atrativo, pois desenvolve uma mística de mistério acerca do propósito da história quais são os objetivos de Wednesday? Qual é o papel de Shadow? No entanto, a série não deixa de ter um conflito para chamar de principal e, nele, inclusive, estão os meus momentos preferidos na temporada. Todo o arco dramático de Shadow com sua esposa Laura (Emily Browning) que volta à vida com pendências não resolvidas com o marido (traição e outras), graças a uma moeda mágica, é muito interessante, principalmente por apresentar uma outra perspectiva “humana” (só que feminina) dentro desse contexto fantasioso.
Infelizmente, a primeira temporada de American Gods perde força nos dois últimos episódios, quando finalmente concretiza os caminhos narrativos que deseja seguir. Com tantos flertes interessantes, a linha escolhida parece ser a mais genérica possível diante de tantas possibilidades promissoras. Não sei até onde é culpa do material original ou realmente da dificuldade em transpô-lo de forma convincente para uma produção televisiva. É estranho porque, mesmo com uma introdução cuidadosa, o senso de gancho dado no último episódio não tem qualquer força; parece carecer de um desenvolvimento que deve vir somente no futuro. Ou seja, a impressão é de que houve um salto muito grande na história, embora faça sentido o clímax ser a descoberta desses propósitos escondidos.
Esse sentimento é reforçado pelo penúltimo episódio, que se caracteriza como um grande filler dentro do sequenciamento. Não chega a ser ruim isoladamente, mas há uma clara e incômoda quebra estrutural que prejudica a sua rítmica. Além disso , a presença de um filler nesse momento põe muitas dúvidas sobre como se dará o preenchimento desse futuro desenvolvimento a ser consolidado. American Gods termina nos ganhando na introdução e visual chamativo – com exceção dos efeitos visuais carregados e muito artificiais do episódio final – de um grande showrunner, mas preocupando com relação a qual conteúdo entregará no futuro, deixando pouco estímulo para acompanhá-la. Independentemente disso, há um rico universo aí. Agora é torcer para ele continuar sendo bem explorado como foi nos primeiros seis capítulos.
Deuses Americanos (American Gods) – 1ª Temporada | EUA, 2017
Criação: Bryan Fuller, Michael Green (Baseado na obra literária homônima de Neil Gaiman)
Diretores: David Slade, Craig Zobel, Vincenzo Natali, Adam Kane, Floria Sigismondi
Roteiristas: Bryan Fuller, Michael Green, Maria Melnik, David Graziano, Seamus Kevin Fahey, Bekah Brunstetter
Elenco: Ricky Whittle, Ian McShane, Emily Browning, Crispin Glover, Bruce Langley, Yetide Badaki, Pablo Schreiber, Gillian Anderson, Cloris Leachman, Peter Stormare, Chris Obi, Mousa Kraish, Omid Abtahi, Orlando Jones, Demore Barnes, Betty Gilpin, Beth Grant, Jonathan Tucker, Martha Kelly, Erika Kaar, Dane Cook, Kristin Chenoweth, Corbin Bernsen, Jeremy Davies
Duração: 8 episódios – 55 minutos em média cada episódio