Não posso afirmar com qualquer grau de certeza, mas a imagem que até hoje se tem do “caipira americano” pode muito bem ter tido sua origem em Amargo Pesadelo, clássico de 1972 capitaneado por John Boorman e que lhe valeu sua primeira indicação ao Oscar de Melhor Filme e Melhor Diretor (a segunda e última vez seria com Esperança e Glória, de 1987). Filmes de horror da mesma década, notadamente O Massacre da Serra Elétrica e Quadrilha de Sádicos, relevantes nesse processo de sedimentação dessa imagem estereotipada do interiorano dos EUA, parecem ter bebido do que Boorman fez a partir do roteiro que James Dickey escreveu com base em seu próprio romance de dois anos antes.
Mas Amargo Pesadelo, apesar de resvalar no horror, é, em essência, um drama sobre a decadência da civilização sob o prisma da amizade entre homens de meia idade que procuram, na natureza, uma forma de escapar de seu cotidiano urbano e da “prisão” da família, além de dar vazão à sua masculinidade, verdade maior em relação ao responsável principal pela viagem, Lewis Medlock, vivido por Burt Reynolds, mas que se aplica, também, ainda que de formas e pesos diferentes, aos três outros, Ed Gentry (Jon Voight), Bobby Trippe (Ned Beatty começando sua carreira) e Drew Ballinger (Ronny Cox em seu segundo longa). Há até mesmo um subtexto ecológico na obra, já que a região e o rio em que eles planejam remar está prestes a se tornar um grande lago em razão da construção de uma represa, mas o que, parece ser um idílico final de semana acaba se tornando o que o icônico título nacional indica, com dois caipiras, durante uma caçada, capturando Bobby e Drew e sodomizando o primeiro, o que acaba levando Lewis a matar um deles com seu arco.
No entanto, diferente do que se pode esperar, o grande momento climático do longa não só é vagarosa e cuidadosamente construído ao longo da primeira metade da projeção, que Boorman usa para trabalhar as personalidades dos turistas e a miséria dos moradores locais, com destaque para a absolutamente inesquecível “batalha dos banjos” entre Drew e o jovem Lonnie (Billy Redden) que tocam, com velocidade cada vez maior, a música Dueling Banjos, de Arthur “Guitar Boogie” Smith, e que se torna o de certa forma enganoso – porque é feliz – tema da epopeia dos quatro amigos, como ele é seguido de algumas sequências curiosamente lentas de “vingança” e, depois, outras que servem como dénouement alongado, por vezes um pouco demais, diria. O que o diretor faz é estabelecer um ritmo compassado que tem como grande atrativo uma abordagem franca e naturalista das filmagens em locação no nordeste da Geórgia e a sequência da sodomia, talvez mais famosa ainda do que já seria em razão do brilhantemente improvisado “squeal like a pig“, fazendo parte de um grande todo, quase – ênfase no quase – como mais um dia na vida deles por ali, mesmo que a tensão e a aflição sejam palpáveis.
É curioso que, ao longo dos anos, a atuação de Burt Reynolds seja possivelmente a mais lembrada e a mais elogiada. Não que o mais famoso ator do elenco à época não tenha uma boa performance, pois ele sem dúvida tem, assim como Beatty e Cox, mas o grande destaque é o trabalho de Voight, o verdadeiro protagonista da fita. De todos os quatro personagens, seu Ed Gentry é o único que verdadeiramente tem um arco narrativo completo e é o único que, por isso, ganha desenvolvimento. Enquanto o Lewis de Reynolds impulsiona a narrativa em seu começo e é responsável pela morte do caipira após o estupro, sua postura é arquetípica do macho man americano, sem nuanças e com muitas bravatas, o homem civilizado que parece agir como seus ídolos do cinema, com Bobby e Drew de Beatty e Cox cumprindo papeis bem específicos, mas naturalmente limitados. Ed, por seu turno, é o homem de família hesitante em estar ali, que não consegue matar animais silvestres para comer e é obrigado a reinventar-se para sobreviver, com uma bela sequência, filmada sem dublês, de escalada de uma escarpa que pode ser encarada como sua própria maneira de deixar para trás seus traços civilizatórios remanescentes.
É bem verdade que o desenvolvimento de Ed é telegrafado em detalhes pelo que o roteiro de Dickey estabelece no primeiro terço, mas Voight faz valer a pena toda a previsibilidade do que acontece, com seu personagem, no momento em que ele realmente precisa entrar em ação e largar de vez seu lado citadino, abraçando o lado primitivo do ser humano. O que funciona muito bem é o quanto Voight imprime de hesitação em seu Ed em transformação, algo que em momento algum parece deslocado ou forçado. Muito ao contrário, é natural que vejamos em Ed alguém como nós, uma pessoa absolutamente normal que precisa trancafiar a moralidade em algum lugar de difícil acesso para fazer algo que nunca fez antes e que não pretende fazer novamente, com todos os erros, tropeços e movimentos estabanados que resultam de sua inexperiência.
Amargo Pesadelo é uma experiência visceral e dolorosa. A construção vagarosa, mas constante do isolamento e do medo por Boorman é exemplar, muito superior a um sem-número de diretores de filmes de horror que acham que mostrar é sinônimo de assustar. Aqui, o menos é mais e o espectador é brindado com sequências memoráveis que vão desde o surpreendente número musical, passando pelo estupro e chegando à catarse final, com homens tornando-se bestas e, depois, tentando retornar ao que eram. E, nesse processo, a imagem nada simpática dos hillbillies americanos tomou a forma e o relevo modernos, para o mal ou para o bem.
Amargo Pesadelo (Deliverance – EUA, 1972)
Direção: John Boorman
Roteiro: James Dickey (baseado em romance de James Dickey)
Elenco: Jon Voight, Burt Reynolds, Ned Beatty, Ronny Cox, Bill McKinney, Herbert “Cowboy” Coward, James Dickey, Billy Redden, Macon McCalman, Belinda Beatty, Charley Boorman
Duração: 109 min.