Luis Buñuel em seu texto Cinema: instrumento de poesia, busca em André Breton, teórico do surrealismo, inspiração para estabelecer as relações do cinema com a realidade. Citando as palavras do autor francês: “o mais admirável no fantástico é que o fantástico não existe; tudo é real“. O caso de Amarelo Manga é, na verdade, uma proposta de compreender como, muitas vezes, a realidade pode vir a se tornar objeto de encanto e, até mesmo, de fascínio. Ao acompanhar a rotina de diversos personagens recifenses acompanhados por um escaldante calor, o diretor Cláudio Assis percebe na crueza da realidade um mundo com inúmeras possibilidades dramáticas cuja fantasia, muitas vezes, não nos permite enxergar. De certa forma, parafraseando Godard, o filme aqui em questão percebe no ordinário, no cotidiano, uma dimensão extraordinária; as minúcias do dia a dia, por mais fúteis ou triviais que aparentam ser, revelam sua potência oculta por meio das lentes de Assis.
Por mais que o filme seja marcado por uma linguagem muito próxima do realismo, Amarelo Manga não busca, de forma alguma, estabelecer um retrato geral da sociedade marginalizada recifense. Não se trata, aqui, de uma obra cuja conexão do povo com a cidade em si seja protagonista da narrativa; não existe, também, qualquer tentativa de explorar uma possível opressão da metrópole nas personagens ali representadas. São apenas pessoas, seres humanos como quaisquer outros, com vidas que se conectam por meio de um pequeno boteco de esquina e um motel de quinta categoria. Seguimos com mais proximidade o cotidiano de Bienô, dono do motel, Dunga, funcionário do motel que esconde uma paixão pelo açougueiro Wellington Canibal. Canibal é casado com Kika, mulher muito religiosa, mas mantém um relacionamento às escondidas com Deyse. Por fim, nos é apresentada a figura de Isaac, um necrófilo fissurado por Lígia, dona do Bar da Avenida. Os dramas e intrigas que permeiam as vidas das personagens acontecem no decorrer de um dia.
“Primeiro vem um dia… tudo acontece naquele dia… depois vem a noite… e logo depois vem o dia outra vez”, diz Lígia na primeira cena do filme. Logo, vem à mente um escrito de Roberto Pompeu de Toledo, uma vez recitado por Antônio Abujamra: “quem teve a ideia genial de cortar o tempo em fatias; a que se deu o nome de ano; foi um indivíduo genial; industrializou a esperança”. As primeiras falas de Lígia são cobertas de esperança, torcendo por um dia em que as coisas se movam. Na cena de abertura, Cláudio Assis nos apresenta a personagens Lígia enquanto arruma seu bar. Suas falas são dadas em voz over. No meio do discurso inicial, um corte: nos aproximamos dela por meio de um close up. Lígia segue falando mas, dessa vez, em quadro. Ela parece olhar para o horizonte e, na medida em que segue falando, seus olhos se enchem de lágrimas. O choro, o olhar perdido, o respirar forte, tudo se relaciona com o tempo: como se o fim de um dia representasse, inevitavelmente, o fim de um ciclo e, por conseguinte, o início de outro. A genialidade da industrialização da esperança descrita por Roberto Pompeu talvez tenha, em seu âmago, uma pequena dose de sadismo. As fatias do tempo servem como uma ilusão que, pouco a pouco, consome as pobres almas que nela se agarram.
De modo menos cruel, Cláudio Assis também adota uma postura pouco acalentadora em relação a seus personagens. Ao invés de estabelecer uma dinâmica naturalista de identificação afetiva com os sujeitos ali retratados, o diretor parece abraçar uma proposta que Ismail Xavier irá chamar de realismo revelatório – termo adaptado das teorias de Kracauer a respeito da relação do cinema com o real. Amarelo Manga é um bom exemplo para se compreender o cinema enquanto veículo único capaz de capturar a dimensão material das coisas – mais adiante, essa questão será abordada novamente. Um dos grandes trunfos de Cláudio Assis que sustenta sua opção de linguagem e, ao mesmo tempo, concede dramaticidade ao filme é o uso da montagem intraplano, na qual a linguagem cinematográfica é articulada sem o uso do corte. Movimentos de travelling, panorâmicas, zoom in, zoom out: todos são capazes de reorganizar os elementos básicos da linguagem do cinema em um mesmo plano. Como exemplo prático e funcional disso, recorre-se à uma discussão entre Wellington Canibal e sua amante, Deyse. No início da cena, os dois, ainda em um princípio de briga, são enquadrados em conjunto, em um plano médio. O tom da conversa aumenta e, com ele, a câmera de Assis começa a se mover em direção à Wellington, que parece incontrolável. Sutilmente, saímos de um plano conjunto, distante, em direção a um close up dominado pela raiva da personagem que, com dedo em riste, berra para sua amante. São esses pequenos tons e sobretons da mise en scène de Amarelo manga que solidificam uma ousada proposta estética de realismo revelatório sem nunca deixar de se adaptar ao que o drama de cada cena se propõe.
Em dado momento do filme, Cláudio Assis revela sua faceta mais cruel ou, até mesmo, cínica. Dentro de uma casa de abate, na qual trabalha Wellington, o diretor presenteia o espectador com uma brutal cena da morte de uma vaca. Há de se dizer que Assis parece querer mostrar os mínimos detalhes desse processo: desde as facadas fatais na cabeça do animal até o ato de arrancar suas tripas. É uma sequência que não poupa a visão do público de ver sangue escorrendo pelo chão enquanto diversos homens picotam o cadáver do animal. Tamanha a crueza da cena, pergunta-se, inclusive, até que ponto não estamos diante de uma sequência documental. E não faltam exemplos na história do cinema de cenas de abates de animais que flertam entre ficção e documentário: desde a nouvelle vague senegalesa até o construtivismo russo. No Brasil, até mesmo nas artes visuais, com Cildo Meireles, existe uma busca pelo choque através da violência contra os animais.
A violência, no entanto, não para na instância homem versus natureza, estendendo seus tentáculos para conflitos estritamente humanos. O realismo de Cláudio Assis parece encontrar ao longo do caminho influências daquilo que Rogério Sganzerla vem a chamar de “cinema do corpo“, no qual discussões filosóficas ou questões discursivas são absorvidas pelas aparências físicas dos seres. A cena anteriormente descrita, da discussão entre Wellington e Deyse, é um exemplo: a tensão é tanta que apenas palavras não servem como sustento e, com a ajuda da mise en scène, chega-se em um ponto no qual há uma imposição física do homem em direção à mulher. Os constantes assédios sofridos por Lígia no bar são igualmente direcionados para conflitos físicos. Os atendentes pouco falam, apenas agem, enquanto ela, em resposta às agressões, reage com mais agressões. O diretor possui, aqui, o mérito de ser capaz de impor aos corpos um carnaval de emoções ao mesmo tempo em que controla ao máximo a encenação para estabelecer seu realismo revelatório.
Existe, ainda, uma curiosa instância de Amarelo manga que dá ao filme um quê de ironia perante os personagens: a incoerência entre o discurso falado e as ações das personagens. Pega-se de exemplo os personagens Isaac e Wellington. O primeiro, construído a partir do estereótipo do macho alfa, incontáveis vezes assedia Lígia com palavras e colocando a mão debaixo de seu vestido. Ao fim do filme, quando Isaac transa com Kika, é revelado ao longo do sexo seu desejo oculto pela sodomia, colocando um ponto de interrogação em sua personalidade arquetípica de homem heterossexual. Do outro lado, o marido de Kika, Wellington, ao falar de sua esposa, apresenta certo grau de devoção, sempre reiterando seu amor por ela. Contudo, mostra-se, ao mesmo tempo, um homem agressivo e, ainda por cima, mantém outro relacionamento. As palavras das personagens de Amarelo manga aparentam não significar absolutamente nada; suas promessas, crenças ou expectativas são em vão. Assim como Dunga e sua falsa esperança em conseguir um relacionamento com Wellington, todo o universo construído por Cláudio Assis é um cruel retrato das desilusões da vida.
Ao final do filme, uma morte abala partes do círculo social das personagens. O dono do motel, senhor Bienô, morre sentado em sua cadeira na recepção do estabelecimento. “A morte de Bienô é um sinal… o sinal das mudanças que nós queremos. Ou então não significa nada… que é mais provável“, diz uma das personagens. A vida em si precisa significar algo? A existência em momento algum se mostrou como tendo um significado maior. As coisas acontecem porque acontecem; não é possível controlar os trilhos do trem da vida mundana. Chega-se, por fim, à última cena: um retorno ao início do filme. Lígia, no bar, novamente reflete em cima da divisão do tempo em dia. Novas esperanças são criadas ao passo em que as antigas morrem. Se ao longo da duração de Amarelo manga as ordens pré-estabelecidas são rompidas, a derradeira sequência final reorganiza o caos. Tudo está como começou, os dias seguirão. E vão seguir criando esperanças que serão, inevitavelmente, mortas e substituídas por outras.
Amarelo Manga – Brasil, 2003
Direção: Cláudio Assis
Roteiro: Hilton Lacerda
Elenco: Leona Cavalli, Matheus Nachtergaele, Jonas Bloch, Dira Paes, Chico Diaz, Magdale Alves, Hilton Lacerda
Duração: 103 min.