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Crítica | Amanhecer na Colheita (Jogos Vorazes: Prelúdio #2), de Suzanne Collins

A tragédia de Haymitch Abernathy.

por Ritter Fan
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  • Não há spoilers deste livro, só dos anteriormente publicados.

Eu não devia, mas vou me arriscar e repetir a forma como comecei a crítica de A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes, ainda que em versão resumida: preferiria que Suzanne Collins, que considero uma escritora acima da média de romances de aventura para jovens adultos, focasse em criar novos universos, mas, se é para ela retornar ao que a tornou famosa, então que seja mesmo na forma de prelúdios de maneira que ela não invente de continuar lidando com Katniss Everdeen, esvaziando o digno final que deu à personagem. Se, no primeiro prelúdio, tivemos uma história de “origem” do vilanesco presidente Coriolanus Snow que se passa na época da 10ª edição dos Jogos Vorazes e que faz as vezes também de “origem dos Jogos Vorazes como os conhecemos”, agora é a vez de aprendermos sobre todos os detalhes da vitória de Haymitch Abernathy quarenta anos depois – e 24 antes do primeiro romance da série na ordem de publicação – no segundo Massacre Quaternário, versão especial dos jogos em que a Capital apimenta a competição com regras novas, no caso específico o sorteio do dobro de Tributos, 48 no lugar dos usuais 24.

Haymitch, claro, é o mentor dos Tributos do 12º Distrito no primeiro livro – a mencionada Katniss e Peeta Mellark -, um homem profundamente traumatizado e psicologicamente destruído que foge de seu passado e de qualquer conexão significativa com o presente mergulhando no alcoolismo, um quadro muito bem pintado por Collins que ela, agora, descortina em Amanhecer na Colheita que, vale afirmar, é o primeiro romance da série a basicamente repetir a estrutura completa do original, ou seja, a lidar com a Colheita (o sorteio de Tributos), a preparação para os jogos e os jogos em si, com espaço para os eventos imediatamente subsequentes e até um pouco mais do que só imediatamente subsequentes. No entanto, o que poderia ser apenas a mesma coisa novamente, com a desvantagem de já conhecermos o resultado, um risco constante de qualquer prelúdio, torna-se uma narrativa poderosa e surpreendente, com Collins esmerando-se não só para fazer as conexões de praxe tanto com o passado quanto o futuro da história macro que conta, como também para inserir os ingredientes das críticas sociopolíticas que tão bem trabalhou na trilogia inicial. E isso sem deixar de trazer situações diferentes mesmo em uma ambientação e estrutura já conhecidos, transformando, desenvolvendo e aprofundando a percepção do leitor sobre o protagonista.

Collins tem plena consciência de que está caminhando por uma estrada já bem viajada tanto por ela quanto por outros autores, mas, ciente disso, ela arregaça as mangas para evitar as armadilhas da mesmice e mantém sua narrativa constantemente fresca, algo que se manifesta até mesmo em como ela economiza em suspenses desnecessários. Um exemplo disso é a própria Colheita, no início do livro, que toma relativamente poucas páginas depois que ela estabelece o Haymitch de 16 anos, sua mãe e seu irmão mais novo Sid, além da breve constelação de personagens relevantes para ele, notadamente sua namorada Lenore Dove. Assim que a autora acha que já chegou ao ponto de amadurecimento, ela aborda o sorteio em si em velocidade de dobra – mas confortável e com eventos relevantes – e já dando o tom de um dos elementos mais importantes do livro e de toda sua franquia literária, que é a efetividade do controle e manipulação das informações para manter a população dócil e ao mesmo tempo temerosa por sua segurança diante de um poder centralizado brutal e inclemente, sem deixar de fazer Haymitch trafegar em um presente que envolve álcool, que ele não consome, só ajuda a fabricar ilegalmente, que, claro, aponta para seu trágico futuro.

Uma vez nos preparativos para os jogos e nos jogos em si, Collins continua firme e forte em sua tentativa de evitar enrolação ou repetição, o que leva a acontecimentos razoavelmente inesperados, mas perfeitamente lógicos na estrutura geral, e que colocam Haymitch em uma posição diferenciada em relação aos demais tributos, inclusive envolvendo-o no que podemos chamar de uma protorrevolução. Seu três colegas de distrito ganham bom desenvolvimento, o que já é um diferencial relevante em relação ao prelúdio anterior, talvez focado demais em Coriolanus em detrimento a todos os demais, e personagens relevantes que conhecemos mais velho na trilogia que tem Katniss como protagonista, são introduzidos e utilizados com veemência e uma boa lógica interna que conversa bem com suas versões futuras. O próprio Coriolanus, muito mais uma sombra maligna, tem seus minutos de glória vilanesca em uma conversa breve, mas assustadora diretamente com Haymitch em determinada altura da história, com sua presença mantendo-se sentida ao longo de todo o desenrolar. Mas, claro, não há espaço para todos e os Tributos Carreiristas assim como o grupo de Novatos que se une para enfrentar os Carreiristas tem pouco destaque e nenhum desenvolvimento para além do estritamente necessário para que eles cumpram funções bem específicas antes e durante os jogos.

Mesmo que Collins acabe pecando por um pós-Massacre Quaternário um tanto quanto corrido, que muito claramente merecia uma abordagem menos esbaforida e mais equilibrada em relação às páginas ocupadas pelos momentos-chave anteriores, a grande verdade é que ela consegue criar uma atmosfera conducente à condição trágica de Haymitch Abernathy quando ele é introduzido no primeiro romance publicado. Trata-se, talvez, do livro mais perturbador dos cinco até agora, que não poupa seu protagonista desde o momento em que ele é escolhido como Tributo até seu retorno ao Distrito 12. Não que Katniss e Peeta sejam poupados no livro de 2008, pois eles não são, claro, mas, aqui, posso dizer com tranquilidade que a faca é metaforicamente cravada em Haymitch logo no início e, a partir daí, ela não só não é retirada, como também é enfiada mais fundo e lentamente retorcida em suas entranhas com um grau poderoso de sadismo, mas nunca de maneira meramente gratuita.

Amanhecer na Colheita, naturalmente já em pré-produção para lançamento cinematográfico, se tudo der certo, em 2026, é um daqueles prelúdios que definitivamente não merece a adjetivação de desnecessário como tantos por aí. Não que o livro seja essencial, vejam bem, mas Collins oferece uma história que realmente acrescenta ao desesperançoso personagem que criou e que revisita a estrutura da obra original de maneira relevante e nem de longe parecendo que ela tentou requentar sua ideia. Quem sabe agora a autora não parte para outros projetos literários fora de Panem, hein?

Amanhecer na Colheita (Sunrise on the Reaping – EUA, 2025)
Autoria: Suzanne Collins
Editora original: Scholastic Press
Data original de publicação: 18 de março de 2025
Editora no Brasil: Editora Rocco
Data de publicação no Brasil: 18 de março de 2025
Páginas: 448

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