A discrepância entre a pretensão de construir uma distopia política e Amanhecer como obra em si compromete largamente a sua apreciação, dado que a forma com que esse conceito sociofuturista é abordado acaba sendo tão morno que nos faz duvidar da real natureza do filme. Em outras palavras, nem sequer parece que a produção é aquilo que se propõe a ser. A premissa que ela sugere permanece perdida em seu contato com o público; as questões de um autoritarismo imanente e uma letargia de desumanização do protagonista, Matija, são tão implícitas que distorcem a compreensão plena de seus conceitos, tornando Amanhecer nada mais do que um longa monótono
Se a degradação de Matija como pessoa é o que lança a premissa do filme, nos primeiros instantes dele próprio vemos o personagem num estado dissonante do que nos é proposto: é apresentado ele transando com a sua esposa. Numa cena simples sem enfeites, mas com a curiosa presença de seus filhos mais novos observando-os por trás da porta. Este é, certamente, o único momento em que Matija se sente realmente humano; daí em seguida se vê apenas transtornos à sua frente. Ele e sua família, que vivem numa área isolada e desvalorizada, irão passar por um processo de decomposição. Processo este estranho, que nunca diz ao que veio, sendo dotado de uma estrutura desconcertante sem qualquer desenvolvimento orgânico.
Matija pode perder a casa e até a família, e como a história se passa num plano distópico, há a liberdade de tudo isso ocorrer de modo anormal, sem contato com a lógica que se observaria em um tempo presente. Mas a grande questão é que o curso desses acontecimentos não carrega uma explicação fora dos trilhos, pois simplesmente não há explicação. As coisas surgem abruptamente numa onda arbitrária de pequenas bizarrices. Poderia funcionar melhor, se caso o filme abraçasse de vez esse tom ilógico, mas ele se encontra perdido entre um andar contemplativo de acontecimentos banais (presentes no campo privado e interno da vida de Matija) e aquilo que acontece fora de seu eixo familiar.
Não há espaço para momentos alegres dentro de Matija, ele já foi ameaçado de perder tudo o que tem e, seguindo esse fluxo, o filme acolhe toda uma frieza para dentro de si. O único rastro de vivacidade naquele mundo se faz presente na filha pré-adolescente de Matija. A garota adora dançar e está sempre de fones de ouvido, tendo a interpretação mais expressiva de todo o elenco – na verdade, a única com algum mínimo de expressividade. Chama a atenção a cena em que ela estimula seu pai a dançar com sua mãe; ele, com uma postura toda engessada, acaba não dançando, dando a entender que há um senso de amargura e melancolia preso em sua personalidade sem a possibilidade para nada além disso, algo meio que intrínseco ao seu ser. Assim, o percorrer de Matija na narrativa segue uma linha determinista de pessimismo em que a única garantia que temos é que nada vai dar certo para ele.
Posterior a esse momento, um homem estranho vai até a casa de Matija para “adquirir” a família dele, o que seria algo formal dentro da política que rege a região onde vive. Assim ele o faz, ressuscitando a dúvida acerca do subtexto político do filme, que proporciona o seguinte questionamento básico: que diabos o longa quer representar? Algo sobre a conjuntura atual da Croácia? Seja o que for, falta um pouco mais de clareza e desenvolvimento nessas questões. Também há uma outra sensação de estranhamento na passagem em que a filha de Matija passa a dançar numa excêntrica festa durante o terceiro ato de Amanhecer. A garota se entrega a um grupo de pessoas esquisitas e passa a se comportar como se fosse mais uma delas. Estes, que são da tribo inimiga de seu próprio pai, fazem parte do incompreensível status quo que domina a comunidade em que vivem.
Amanhecer (Zora) – Croácia e Itália, 2020
Direção: Dalibor Matanic
Roteiro: Dalibor Matanic
Elenco: Kresimir Mikic, Tihana Lazovic, Maks Kleoncic, Lara Vladovic, Marco Mandic
Duração: 126 minutos.