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Crítica | Almas Perversas

por Ritter Fan
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A experiência de assistir Almas Perversas logo depois de Um Retrato de Mulher, ambos de Fritz Lang e que estrearam em anos consecutivos, é uma experiência no mínimo curiosa. Afinal, além do mesmo diretor, os longas compartilham a mesma trinca principal de atores – Edward G. Robinson, Joan Bennett e Dan Duryea – em papeis muito semelhantes em roteiros tematicamente quase idênticos, com fotografia e estilo noir impressos pelo mesmo diretor de fotografia, Milton R. Krasner. Almas Perversas, porém, foi curiosamente baseado em romance do francês Georges de La Fouchardière, o que quase dá a entender que Um Retrato de Mulher foi uma adaptação não-autorizada e não creditada da obra original, pois é coincidência demais para simplesmente ter acontecido do nada.

Felizmente, porém, Almas Perversas é um filme muito mais “completo” que Um Retrato de Mulher. O mesmo catalisador, um homem em crise de meia idade envolvendo-se com uma femme fatale e metendo os pés pelas mãos quando ele começa a ser manipulado por ela, que, por sua vez, é manipulada por seu noivo, resulta em um longa substancialmente cuidadoso, com uma boa discussão psicológica de dependência em diversos níveis e, melhor ainda, com um final corajoso e, ao mesmo tempo, perturbador. Não é nem de longe uma obra-prima, mas sem dúvida está vários passos de distância de seu predecessor (e quase clone), o que inclusive abre espaço para belas atuações dos três atores principais.

Edward G. Robinson cria seu Christopher “Chris” Cross como um homem completamente sem pulso e personalidade que vive uma vida terrível por ter casado por mera conveniência espacial, tendo que conviver com o enorme quadro do primeiro marido de sua esposa (ela é viúva) orgulhosamente pendurado na parede da sala de casa. De olhar triste, andar cabisbaixo, Cross é um literal farrapo humano que, porém, parece iluminar-se a partir do momento que conhece  Katherine ‘Kitty’ March, vivida por Joan Bennett em um papel de mulher fatal bem mais interessante, em circunstâncias que parecem repetir as do longa anterior do diretor. Tudo bem que o roteiro adaptado de Dudley Nichols (Levada da Breca, No Tempo das Diligências) exige demais da suspensão da descrença ao caracterizar Cross com um nível absurdo de inocência, algo que é amplificado por tomadas brilhantes como quando a câmera inverte a lógica de determinada sequência e estabelece, com seu posicionamento e, claro, com os próprios acontecimentos em si, a subserviência de Cross em relação a Kitty na sequência em que ela o faz pintar as unhas de seus pés (vide a imagem escolhida para ilustrar a presente crítica), e, por vezes, essa suspensão vai além dos limites possíveis, o que pode criar desconforto no espectador.

O malandro Johnny Prince, vivido por um Dan Duryea que parece estar se divertindo demais no papel, é outro achado, misturando violência com comédia em medidas iguais que criam enorme ambivalência moral ao personagem. No entanto, é importante notar que o roteiro não perdoa verdadeiramente ninguém, pelo que é possível que muita gente não consiga criar empatia por nenhum dos três personagens principais. Claro que o sentimento de pena circundará Chris Cross, mas ele vai aos poucos se transformando em repugnância pela forma como ele se deixa manipular e pelo que ele faz para manter a ilusão de algo que ele não é somente para manter-se próximo de Kitty. A interação entre os três personagens, por outro lado, é muito bem trabalhada e com uma boa dinâmica teatral de “entradas e saídas” que, mesmo resvalando no nonsense por vezes, quase sempre consegue manter uma lógica interna interessante e a ação ágil.

Da mesma forma que o longa anterior, há um lado fortemente moralista – fruto também do maldito Código de Produção -, mas, aqui, tanto o roteiro de Nichols quanto a direção de Lang conseguem navegar pelo emaranhado do que pode e do que não pode criando uma obra que se beneficia justamente dessas demandas e cria um final que hoje pode não ser nada surpreendente, mas que, naquela época, certamente pareceu inovador e duro, tanto que o filme foi, mesmo aprovado pela MPA, proibido em diversos estados americanos. Com Almas Perversas, segunda tentativa de Lang sobre o mesmo tema quase que em um curioso caso de autoplágio, o diretor finalmente acerta em criar um noir de gabarito, que merece ser conhecido.

Almas Perversas (Scarlet Street – EUA, 1945)
Direção: Fritz Lang
Roteiro: Dudley Nichols (baseado em romance de Georges de La Fouchardière)
Elenco: Edward G. Robinson, Joan Bennett, Dan Duryea, Margaret Lindsay, Rosalind Ivan, Jess Barker, Charles Kemper, Anita Sharp-Bolster, Samuel S. Hinds, Vladimir Sokoloff, Arthur Loft, Russell Hicks
Duração: 102 min.

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