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Crítica | Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll

por Luiz Santiago
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_ Mas eu não quero encontrar gente louca – observou Alice.
_ Você não pode evitar isso – replicou o gato. – Todos nós aqui somos loucos. Eu sou louco. Você é louca.
_ Como sabe que eu sou louca? – indagou Alice.
_ Deve ser – disse o gato – ou não teria vindo aqui.

O reverendo (diácono, na verdade, embora ele mesmo utilizasse o título de “reverendo”), lógico e matemático Charles Lutwidge Dodgson é mais conhecido por sua produção literária, escrita sob o pseudônimo de Lewis Carroll. A primeira dessas produções, Alice no País das Maravilhas (1865), possui uma história de origem que já no início de qualquer conversa sobre o autor, acaba vindo à tona; e isso tem a ver com o comportamento pessoal de Carroll em relação a meninas. Os biógrafos do autor divergem em relação a uma afirmação categórica sobre o fato de o escritor ser ou não um pedófilo, mas há um consenso (mesmo que se faça o contexto social da Inglaterra Vitoriana, levando em consideração o entendimento que se tinha da criança na época e a idade de consentimento para o sexo, que então era de 12 anos) sobre um comportamento visto hoje como, no mínimo, estranho. Ainda temos fotografias e desenhos de Carroll feitos de meninas nuas e/ou seminuas, e também muitas cartas que ele trocava com essas garotas*, inclusive com Alice Liddell, que serviu de inspiração para a criação de uma aventura inicialmente chamada de Alice’s Adventures Under Ground (primeiro manuscrito), datado de 1864. No ano seguinte, viria a público uma versão estendida e com um novo título: Alice’s Adventures in Wonderland. Esta é a famosa história que hoje conhecemos.

Acredito que seja bem difícil alguém chegar a este livro sem conhecer nada da história. A maioria das pessoas conhecem a animação da Disney e em algum momento se deparou com dezenas, senão centenas de referências a Alice em outros filmes, séries, quadrinhos, músicas, peças de teatro, etc. Ler este livro, portanto, é aprofundar-se em uma narrativa nonsense da qual já conhecemos um bocado, mas que mesmo assim tem a capacidade de nos impressionar. Desde as primeiras páginas, quando encontramos o Coelho Branco passando correndo por Alice, em uma tarde modorrenta, ficamos animados para [re]viver a queda da garota na toca e todas as loucuras que ela encontraria naquele buraco. Saltam ao olhos, então, dois temas iniciais que nos fazem discutir sobre este livro ser ou não ser um exemplar da literatura infantil. Primeiro, a figuração de algo muito típico da nossa realidade e que o autor refigura o uso aqui: o tempo. O Coelho Branco está sem tempo e, por isso, segue estabanado em direção a algum lugar. Essa pressa do bicho chama a atenção de Alice, que fica (e aqui vai o outro tema importante) curiosa para saber do que se trata.

Nada mais normal encontrar curiosidade em uma criança de 7 anos, não é mesmo? Pois esta é Alice, que consegue sair de seu mundo através de um de seus grandes símbolos de ordenação diária (o tempo, o relógio e os consequentes compromissos), para entrar em uma realidade onde ela não só experimentaria coisas, comendo e bebendo, como também sentiria coisas, aumentando e diminuindo de tamanho a cada novidade que tocava o seu corpo. Essas constantes transformações levantam um entendimento geral sobre a identidade de Alice, pois ela não consegue mais saber quem é, e tanto a Lagarta com o narguilé quando o Gato de Cheshire (disparado, o meu personagem favorito do livro) colocam a menina em uma espécie de crise de identidade porque ela não consegue se definir e nem se entender mais. A quantidade de coisas que cercaram Alice nesse dia movimentado + o pouco ou nenhum entendimento dessas coisas definitivamente a fazem sofrer, mas nem por isso ela deixa a curiosidade de lado (notem que o mais fervoroso desejo dela é conhecer o jardim) ou fica paralisada e calada diante das coisas que lhe surgem pela frente.

Na História da Literatura, País das Maravilhas marca uma nova abordagem na maneira de se escrever para crianças e adolescentes. Ou, se você está no time que não acha que este livro é para crianças, uma nova abordagem na maneira de apresentar um Universo infantojuvenil para indivíduos que já passaram dessa fase e que podem entender e interpretar das mais variadas formas as provações pelas quais a protagonista passa. Não é raro, daí, surgirem interpretações muito ricas para cada personagem (Chapeleiro Louco, Lebre de Março, Rainha e Rei de Copas, Coelho Branco, Gato de Cheshire, Lagarta e Tartaruga Falsa são os mais lembrados), indo da psicologia e das questões comportamentais até indicações metalinguísticas, considerando mensagens ocultas do autor ou alguns de seus enigmas e passagens lógicas através desses indivíduos — uma marca do estilo de escrita de Carroll que, não podemos nos esquecer, era matemático.

Para um livro propositalmente marcado por coisas sem sentido, em verso e prosa, é impressionante o quanto o autor consegue costurar tudo e dar um sentido maior à narrativa, que termina sendo um sonho de Alice. O único momento em que eu não vejo esse controle agir é no 10º capítulo, A Quadrilha de Lagosta. Não consegui entender qual foi a intenção desse momento do livro e inclusive acho a ordenação do nonsense aí muitíssimo inferior a todo o restante do volume. Outro ponto que me incomoda um pouco é a maneira abrupta e nadinha elegante com que Carroll encerra essa viagem de Alice pelo País das Maravilhas. Depois de uma apresentação tão bem guiada, pensada e construída, depois de uma divertidíssima viagem por esse local esculhambado, o leitor é jogado para a realidade apenas como se estivesse acordando de um pesadelo. E por mais fã que seja um leitor e tente argumentar o problema exatamente por essa técnica do “acordar de um pesadelo“, devo chamar a atenção para o nível do início e do miolo da obra, comparando-os com esse final mais fraco em termos de narrativa. E alguém pode dizer: “bom, mas é só isso. Não tem nada mais!“. Bem… na verdade tem si. E isso eu considero bem pior que os outros dois pontos que não me agradaram. Trata-se do “epílogo” com a irmã de Alice meio que ‘vivendo’ o que ouviu da pequena e acordando para imaginar o futuro da dorminhoca.

Se o capítulo com a lagosta e a construção mediana para o despertar de Alice não condiziam com a qualidade geral do livro, quem dirá esse surto realista final, quase um toque moral típico das aventuras infantis do período, do qual Carroll fugiu tão habilmente até ali. Esta é definitivamente a pior coisa que encontramos em Alice no País das Maravilhas. Dentre os melhores encontros, porém, temos uma caminhada de aprendizado cheia relações improváveis, com animais estúpidos (as patadas que Alice toma de alguns aqui me fizeram gargalhar com um pouco de dó da menina… mas ela também não deixa barato não!) e algumas aproximações simbólicas de como funcionava a sociedade britânica naquela época. É um Universo onde cabem tanto as questões íntimas de um Ser em construção, quanto as coisas mais sérias e incompreensíveis do mundo ao seu redor. Um país bizarro e amedrontador digno de um pesadelo de criança.

* Caso tenham interesse, sugiro a leitura do livro Lewis Carroll – Cartas às Suas Amiguinhas, publicado aqui no Brasil pela editora Sete Letras, em 1997, com tradução de Newton Paulo Teixeira. Na obra, vocês irão encontrar, como aponta uma breve sinopse do livro, “53 cartas escritas entre os anos de 1855 e 1896, seis delas com datas desconhecidas, tendo como destinatárias 38 diferentes crianças, meninas, em sua grande maioria, com idades entre 10 e 15 anos, as quais ele também fotografava“.

Alice no País das Maravilhas (Alice’s Adventures in Wonderland) — Reino Unido
Autor: Lewis Carroll
Publicação original: Editora Macmillan, 26 de novembro de 1865
Ilustrações originais: John Tenniel
Edição lida para esta crítica: DarksideBooks, 2019
Tradução: Marcia Heloisa, Leandro Durazzo
226 páginas

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