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Crítica | Alice no País das Maravilhas (1951)

por Gabriel Carvalho
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“Qual é a semelhança de um corvo com uma escrivaninha?”

Em termos de análises tradicionais, Alice no País das Maravilhas é um filme com bastante margem para críticas negativas. A obra em si funciona episodicamente e a simplicidade da “trama” é imensa. Alice (Kathryn Beaumont) começa a seguir um coelho e cai em um buraco que a leva ao País das Maravilhas. No restante do filme, a jovem simplesmente prosseguirá com a caminhada, conhecendo inúmeros personagens icônicos, sem qualquer “história”  factual para amarrar cada um dos encontros. A própria figura de Alice é, entre aspas, desinteressante, sendo uma personagem que reage aos absurdos que aquele universo a proporciona, não participando deles ativamente, como se tivesse uma intenção a mais a não ser continuar perseguindo o coelho ou tentando fugir daquele universo frenético. Dessa forma, como é que o longa-metragem de 1951 ainda assim pode ser categorizado como uma das melhores produções já feitas pela Disney? A resposta é que, diferentemente de outros trabalhos, Alice não se sustenta em padrões tradicionais de narrativa. Na realidade, pouco importa o que está acontecendo, mas o que está sendo absorvido. Alice no País das Maravilhas é um dos filmes mais sensoriais da gigantesca história do estúdio de animação, usando e abusando com vontade de um surrealismo admirável, quase como em uma viagem causada por drogas alucinógenas. Ou você pensou que aquele chá era apenas chá?

Em um primeiro plano, a estética é fundamental para nos privar do mundo real em prol de uma experiência imersiva. As cores nunca antes haviam sido usadas com tanta vivacidade quanto nessa produção. O psicodelismo, amado na breve aparição em Dumbo, é uma constante deste longa. O visual dos personagens também é outro acerto, sendo que eles, ao lado dos cenários, foram coloridos sob óticas infantis, omitindo a barreira entre o pitoresco e a realidade, sem sustentar as pinturas em ordens convencionais de coloração. Todas as cores inimagináveis, até mesmo aquelas que nem existem, estão presentes na animação, a qual também abraça outro caráter de maneira invejável: o sombrio. O trio de direção do longa-metragem consegue trazer uma transposição fluida da fantasia mais leve para os caminhos mais assombrosos e perigosos para a pequena Alice. A ambientação inóspita contrasta perfeitamente com os cenários mais aprazíveis, sendo tudo parte de um delírio entre sonho e pesadelo. Enquanto está perdida, em um floresta com placas apontando para todas as direções, o espectador também está perdido. Na realidade, é difícil que em algum momento estejamos céticos em relação à obra, sendo ela um exemplar clássico daquelas produções nas quais os espectadores devem dar o comando de suas cabeças para os realizadores em detrimento de uma descrença problemática.

Sob um olhar onírico, que claramente evidencia, pela sua própria natureza, uma lógica do absurdo, Alice encontra diversos personagens em sua caminhada, muitos visualmente inacreditáveis; todos parte de um conjunto maravilhoso. A famosa hora do chá, com a presença ilustre do Chapeleiro Maluco (Ed Wynn), figura que seria popularizada ainda mais pela interpretação de Johnny Depp no filme live-action homônimo de 2010, é o nonsense em sua maestria. Nenhuma das falas, tanto as ditas pelo Chapeleiro quanto as ditas pela Lebre de Março (Jerry Colonna) ou pelo Rato (Jimmy MacDonald), fazem o menor sentido. Chá? Dentre as demais caricaturas deste mundo de maravilhas, a Rainha de Copas (Verna Felton) se sobressai, embora só apareça nos últimos vinte minutos de filme. Com um temperamento inconstante, temos, ao seu lado, o imaginativo conjunto de soldados inspirados em cartas de baralho. Alice no País das Maravilhas cria cenas extremamente criativas, sem nenhum apego a regras. O julgamento da menina é outra das loucuras inspiradas na literatura de Lewis Carroll. Aliás, a animação contém aspectos tanto de Alice no País das Maravilhas quanto de Alice Através do Espelho, sendo uma mistura extremamente divertida de ambas as obras. Muito provavelmente, dentre as adaptações de histórias clássicas feitas pela Disney, Alice seja aquela que, em tom, aproxime-se mais do material fonte, igualmente pirado.

Ademais, é impossível analisar a animação sem citar o inesquecível Gato de Cheshire (Sterling Holloway), malandro e enigmático. A presença dele possibilita diálogos extremamente afiados do personagem com Alice. Temos, então, alguns dos diversos jogos de palavras fabulosos da animação. Para exaltar as digressões existentes no mundo dos sonhos, a dupla cômica, com um ar misteriosíssimo, Tweedledee e Tweedledum (J. Pat O’Malley), nos apresenta o conto “A Morsa e o Carpinteiro“. A “ponta solta” cabe perfeitamente dentro do conjunto da obra, com mais pontas e mais pontas. Por fim, todo o intuito lisérgico é escancarado na presença da Lagarta Azul (Richard Haydn), que fuma um narguilé e conduz, em completa plenitude, sua conversa com Alice. A Lagarta também introduz, mais explicitamente, uma possível interpretação da obra, tratando do crescimento da menina e as diversas características que comportam a metamorfose corporal e mental existente na passagem da infância para a adolescência. As tantas vezes em que Alice cresce e diminui de tamanho poderia representar as mudanças em seu corpo, assim como a sensação de não se encaixar perfeitamente no mundo, como uma peça desconexa de algum quebra-cabeça – algo exibido de maneira mais clara na cena em que a garota fica presa na casa do Coelho Branco (Bill Thompson). Dessa forma, Alice no País das Maravilhas, além de toda a sua grandiosidade “despretensiosa”, também tem um lado mais alegórico; uma visão optativa a ser comprada ou não pelo espectador.

Mesmo assim, no final das contas, Alice no País das Maravilhas acaba atuando, em estilo, contra si mesma. A questão é que a efemeridade dos encontros acaba por transformar tudo em algo, de certa forma, esquecível. O impacto permanece, mas a trajetória fica embaralhada em nossa cabeça. Ao mesmo tempo, a trilha sonora é trabalhada da mesma forma. Alice é um musical. As canções definitivamente servem para contar “história”, caracterizar a insanidade generalizada. Porém, elas terminam não sendo tão reconhecíveis para nós quanto as mais memoráveis de outros longas-metragens. Das que se destacam, são notáveis The Unbirthday Song e Painting the Roses Red; um adendo a primeira e a lógica ilógica do desaniversário, mais um item mágico da mitologia desse País das Maravilhas. Sendo assim, por um outro lado dessa mesma parede, Tweedledee e Tweedledum apresentam umas três canções – todas funcionam e são energéticas, mas acabam perdidas na nossa mente. Todavia, Alice no País das Maravilhas continua a ser uma produção ímpar dos estúdios de Walt Disney, impossível de ser ignorada após ser assistida e enquanto estiver sendo assistida. Sobretudo, é um trabalho espirituoso e cômico, um cruzamento de sensações absurdas que criam um absurdo deveras absurdo. O resultado é um filme absurdamente maravilhoso. Aliás, mais chá?

Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland) – EUA, 1951
Direção: Clyde Geronimi, Wilfred Jackson, Hamilton Luske
Roteiro: Milt Banta, Del Connell, William Cottrell, Joe Grant, Winston Hibler, Dick Huemer, Dick Kelsey, Tom Oreb, Bill Peet, Erdman Penner, Joe Rinaldi, Ted Sears, John Walbridge (baseado em obra de Lewis Carrol)
Elenco: Kathryn Beaumont, Ed Wynn, Richard Haydn, Sterling Holloway, Jerry Colonna, Verna Felton, J. Pat O’Malley, Bill Thompson, Heather Angel, Doris Lloyd, Dink Trouts, Joseph Kearns, Jimmy MacDonald, Larry Grey, Queenie Leonard
Duração: 75 min.

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