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Crítica | Alan (2022)

Favela, favela, favela.

por Michel Gutwilen
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O documentário Alan, na Competitiva do Olhar de Cinema em 2022, pode ressoar muito com outra obra exibida na edição online do ano passado, que é o O Sonho do Inútil. Nestes dois filmes-irmãos, há uma ideia de justiça retroativa através do Cinema. A partir de relações afetivas entre realizador e protagonista, eles surgem para mostrar todo o lado humano por trás de duas pessoas (não menos importante: artistas), que, sendo periféricos que não encontraram oportunidades no mundo, se envolveram com o submundo do crime e foram mortos. Portanto, se a última imagem em vida dessas pessoas foi a de serem criminosos, Alan e Sonho do Inútil jogam no lixo este estereótipo e deixam como imagem final (legado), a imagem do humano de trajetória complexa, ao mesmo tempo que também fazem profundas investigações sociais a partir dos seus casos particulares. Acima de tudo, enfocam artistas que jamais tiveram a oportunidade de atualizar sua potência máxima, em um verdadeiro desperdício da arte humana.

Alan do Rap é um morador de favela que trabalha com coleta de lixo, mas seus reais interesses estão na música e na arte de improviso do rap, como gesto político e forma de denunciar sua realidade. Bem desenrolado e crítico da sociedade, ele queria apenas uma oportunidade, mas a vida nunca deu, então decidiu por fazer as coisas de seu jeito. Em tomada de assalto, contra as regras do sistema e suas barreiras, ele decide invadir em shows de nomes ligados ao rap para poder subir no palco e cantar, como gesto político. Assim, conseguiria sua atenção na marra, jogando os holofotes sobre ele. Como as imagens de arquivo mostram, ele consegue subir em apresentações dos Racionais e de Alpha Blondy, adquirindo uma certa fama por isso, como foi o caso do hit chiclete “favela, favela, favela”. Deste modo, ele se tornou uma figura peculiar na cena lá pelos anos 2000, até aparecendo em programas de TV que olharam para ele com um olhar curioso, mas a verdade é que isso nunca deu oportunidades reais ou abriu portas para ele enquanto artista.

Então, se a própria cena da música não permite espaços, cabe a uma outra arte, o Cinema, dar este holofote. Os diretores Daniel e Diego Lisboa, que trabalharam no projeto por mais de 20 anos, nunca delimitam exatamente em que ponto começa a relação deles com Alan. O que pode ser uma lacuna proposital para não tirar a atenção da pessoa enquanto artista, na verdade joga contra o filme pois a partir de um certo ponto um dos diretores começa a ter a sua presença em cena gradualmente aumentada, então entender a relação entre eles ajudaria na ligação emocional para qual ele se envereda. Os Lisboa teriam conhecido ele pelas invasões aos palcos e foram abordá-los como cineastas curiosos? Seriam amigos pessoais de longa data desde antes?  

Independentemente disto, não há dúvidas sobre o fascínio dos diretores por Alan enquanto artista. Por boa parte do filme, a câmera faz apenas o trabalho de ligar e cumprir apenas o papel vital: enquadrar seu astro e, principalmente, não cortar sua exposição de pensamentos, permitindo na integridade seu fluxo de ideias por rimas artísticas. É uma câmera muito generosa no sentido de saber dar o espaço certo para este personagem ser o centro das atenções e ao mesmo tempo, permitindo que o público conheça Alan a partir de sua própria figura. Em outros momentos, como é o caso em que o rapper está na prisão e não é possível filmá-lo, pensa-se em saídas por imagens abstratas e poéticas (nem sempre criativas, mas há um registro genuíno pelo menos), principalmente pela estrada, que complementam visualmente uma narração do conteúdo de suas cartas escritas sob o cárcere.

Alan também seria pautado na atividade de montagem, pois por seu prolongamento natural ao longo de décadas, mostra-se preciso um trabalho de seleção do material bruto para decidir o que deixar no filme. O resultado disso é um filme fragmentário que avança no tempo por elipses e, conforme sua progressão, há uma angústia de parecer cada vez mais incontornável o destino do personagem. Os diretores até ensaiam algumas despedidas, parecendo que o inevitável ocorreu, mas o momento é segurado até o máximo, o que também mostra como por muito tempo ele viveu na corda bamba.

Em contrapartida, há também a intencionalidade em botar o outro lado da moeda, de permitir visões externas sobre Alan, por pessoas que cruzaram o seu caminho, encontrando sua ressonância mais forte em Mano Brown. Afinal, Alan também não se trata de um herói e o papel do filme parece ser longe desse, inclusive jogando luz, ainda que parcialmente, no seu envolvimento com crimes como o sequestro e o cárcere privado. É claro que o filme consegue tecer uma ligação entre macro e micro mais universal que permite para entender que quando o homem periférico não tem oportunidades, a chance de acabar no mundo do crime é alta, mas há também uma particularidade em Alan parecer uma figura imprevisível, agente do caos que foge qualquer espectro moral. Justamente toda essa complexidade de sua figura faz com que suas cenas sejam também um objeto de investigação muito fascinante por parte do espectador, que sabe do que aquele homem é capaz mas ao mesmo tempo vê ele falando com tanta articulação, sinceridade e sensibilidade sobre a arte e o modo de ver o mundo. 

Com uma linguagem de rua, Alan ganha como força a própria limitação de seu amadorismo no registro, que se reflete tanto na imagem quanto no áudio, fazendo todo esse universo documental um conjunto de ruídos imperfeitos, talvez o modo mais verdadeiro de capturar seu protagonista e sua essência. Quando esse homem pega duas armas na mão, em cena de forte impacto visual, e começa a soltar um fluxo de pensamento, que também é manifesto de raiva sobre tudo o que sente, talvez esteja aí toda a síntese do filme. Ver o acúmulo de sentimentos que poderiam ser direcionados para a arte mas só conseguiram ser extravasados a partir da violência só mostra como fracassamos enquanto sociedade. O momento fica ainda mais bonito quando Alan faz o movimento de trocar a arma pela caneta, mas aí já é tarde demais.

Alan (2022) — Brasil
Direção: Diego Lisboa, Daniel Lisboa
Roteiro: Diego Lisboa, Daniel Lisboa
Elenco: Alan do Rap, Diego Lisboa, Mano Brown, Alpha Blondy
Duração: 92 mins

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