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Crítica | Ainda Temos o Amanhã

Um ato de rebeldia.

por Ritter Fan
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Maior bilheteria de 2023 na Itália e quinta maior bilheteria da história daquele país, Ainda Temos o Amanhã é o longa de estreia da atriz Paola Cortellesi como diretora, que também co-escreveu o roteiro ao lado de Furio Andreotti e Giulia Calenda e atua no papel principal. Trata-se de uma invejável estreia nesta cadeira, em um filme relevante por sua temática, por seu contexto histórico e também por sua estética, em um pacote cinematográfico ousado que aborda assuntos desagradáveis de maneira sóbria e elegante, o que certamente explica seu sucesso e sua importância.

Passado em meados de 1946, com a Itália empobrecida ocupada pelas forças aliadas depois da devastadora Segunda Guerra Mundial, o longa foi concebido para ser também uma homenagem ao neorrealismo italiano representado por nomes como Luchino Visconti e Gianni Puccini, fazendo uso, portanto, de fotografia naturalista em preto e branco, uma abordagem crua da vida citadina nos subúrbios de Roma da época e toda a estrutura familiar patriarcal que era e que, de certa forma, continua sendo a regra por lá. É importante compreender, porém, que não se pode dizer que Ainda Temos o Amanhã é um filme neorrealista ou mesmo uma tentativa de revival do estilo de uma época, até porque a diretora faz umas excelente misturas estilísticas com uso de breves “momentos musicais” que resvalam no surrealismo. Trata-se, efetivamente, de uma homenagem que faz perfeito sentido dentro dos temas discutidos, já que foram os filmes dessas décadas – anos 40, 50 e 60 – que não só informaram a indústria cinematográfica italiana moderna, como abriram as portas para que os assuntos que Cortellesi lida deixassem de ser tabus.

E que temas são esses? Em uma pincelada ampla, o longa fala da posição da mulher na sociedade. Eu poderia acrescentar “da época”, mas eu estaria sendo leviano, já que isso levaria à conclusão que, hoje, não é mais assim tanto por lá quanto por diversos outros países do mundo, no Ocidente e no Oriente, nos mais até os menos desenvolvidos. Cortellesi usa um recorte de época para trazer à tona o poder do patriarcado, a violência doméstica, a desigualdade salarial entre homens e mulheres, a submissão da mulher ao homem e assim por diante, algo que o cotidiano repetitivo da protagonista, uma mulher casada de meia idade e mãe de três filhos, deixa dolorosamente evidente. Delia (Cortellesi) não só precisa fazer todos os afazeres domésticos de todos os membros de sua família, inclusive cuidar do Sr. Ottorino (Giorgio Colangeli), seu sogro acamado, como sofre na mão do marido abusivo Ivano (Valerio Mastandrea) que, a qualquer momento de contrariedade, a espanca quase que cerimonialmente, além de não receber nenhum tipo de reconhecimento de seu valor por parte de seus filhos.

E, entre a preparação do café da manhã em um apartamento/porão caindo aos pedaços e do jantar, Delia passa seu dia pulando de bico em bico ganhando migalhas e laboriosamente escondendo parte do dinheiro para que seu marido simplesmente não gaste tudo. O grande acerto de Cortellesi na direção é lidar com os espaços cênicos de maneira cuidadosa, desenvolvendo Delia a partir deles com pouquíssimo uso de diálogo e estabelecendo uma repetitividade que, sob suas lentes, ganha incrementos a cada novo “recomeço”, seja a relação de amizade com o soldado afrodescendente americano que a protagonista conhece em um certo dia, seja no passado perdido representado pelo mecânico local, seja pela esperança de que sua filha mais velha, Marcella (Romana Maggiora Vergano), finalmente fique noiva de seu namorado Giulio Moretti (Francesco Centorame), de família endinheirada, e tendo uma vida diferente da dela ou, claro, sua amizade com Marisa (Emanuela Fanelli) que tem um casamento bem diferente do dela.

O filme brilha nesses momentos que descrevi e na calma com que Cortellesi lida com sua protagonista que, aliás, conta com um estupendo e delicado trabalho de maquiagem e penteado que parece “sugar” a vida de Delia. Há espaço de sobra para o espectador apreciar a atuação de Cortellesi, mas também as de Vergano e de Mastandrea, este último basicamente invocando o estereótipo infelizmente bem real do homem brucutu que acha que sua esposa é sua serviçal e uma mera recipiente de suas surras, entre uma sessão de sexo sem amor e outra. Mesmo considerando que todo o elenco está uniformemente muito bem, é essa trinca acima que merece os maiores destaques, com a Marcella de Vergano representando a versão ainda esperançosa da Delia de Cortellesi, uma versão alguns (poucos) passos antes de encontrar com o seu próprio Ivano e repetir o ciclo.

O filme brilha menos quando o roteiro usa um atalho narrativo que envolve a relação de amizade entre Delia e o soldado americano que mencionei, já que existe uma barreira linguística entre os dois que não permite o pulo de lógica necessário. Não é algo que atrapalhe de verdade o longa, mas chama a atenção por ser uma facilitação inverossímil que poderia ter sido contornada com alguma facilidade. E o filme brilha menos também – e aí é uma questão que reconheço ser polêmica – porque Cortellesi cria uma reviravolta narrativa que funciona como uma espécie de chamariz para prender a atenção do espectador, algo que considero desnecessário dada a temática do longa. Não abordarei aqui o assunto, claro, bastando dizer que é algo relacionado com uma misteriosa carta que Delia recente a certa altura da história e que a forma como Cortellesi conduz o mistério poderia equiparar-se ao que M. Night Shyamalan famosamente fez em O Sexto Sentido. Não falo, aqui, de nada sobrenatural, longe disso, mas apenas a estrutura de como tudo acontece, ainda que, novamente, haja uma razão boa para a diretora ter escolhido esse caminho, razão essa que fica constantemente no segundo plano do filme e que é difícil de perceber, funcionando apenas em retrospecto. Não é que não seja interessante, mas me parece deslocado no estilo do filme e eu acho que não era necessário cultivar o mistério, o que tira um pouco o foco do longa tanto em relação aos seus assuntos centrais, quanto ao que é abordado na reviravolta.

No entanto, mesmo com “menos brilho” em alguns momentos, Ainda Temos o Amanhã nunca realmente perde seu brilho. Paola Cortellesi entrega um longa cativante, tematicamente relevante e estilisticamente muito belo, com grandes atuações. Não é todo diretor estreante que consegue esse feito, especialmente arriscando-se em fazer bem mais do que apenas o básico, já que seria muito fácil usar fotografia colorida e seguir por um caminho mais objetivo, mais “moderno”, por assim dizer. Ao real e profundamente olhar para o passado, Cortellesi criou uma pequena joia do cinema italiano que, espero, ganhe espaço e reconhecimento também em outros países.

Ainda Temos o Amanhã (C’è Ancora Domani – Itália, 2023)
Direção: Paola Cortellesi
Roteiro: Furio Andreotti, Giulia Calenda, Paola Cortellesi
Elenco: Paola Cortellesi, Valerio Mastandrea, Romana Maggiora Vergano, Emanuela Fanelli, Giorgio Colangeli, Vinicio Marchioni, Francesco Centorame, Lele Vannoli, Paola Tiziana Cruciani, Yonv Joseph, Alessia Barela, Federico Tocci, Priscilla Micol Marino, Maria Chiara Orti, Silvia Salvatori, Mattia Baldo, Gianmarco Filippini, Gabriele Paolocà
Duração: 118 min.

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