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Crítica | Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva

Ditadura, Alzheimer e franqueza.

por Ritter Fan
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Ainda Estou Aqui lida com dois assuntos centrais muito duros e difíceis, a ditadura militar no Brasil e o Alzheimer, uma combinação que tinha tudo para tornar minha leitura morosa, arrastada e reticente pelos horrores do período que muita gente até hoje acha que não foi nada demais (e escreve a expressão entre aspas, para ironizá-la) e pelo medo que sinto dessa doença e sei que não estou sozinho nisso. Mas Marcelo Rubens Paiva opera milagres com sua obra que é ao mesmo tempo autobiográfica e biográfica de seus pais, o deputado federal Rubens Paiva e a advogada Eunice Paiva, em que as memórias – resgatadas, misturadas, destruídas, esquecidas, lembradas e perdidas – funcionam como o fio condutor de toda a narrativa.

O que chama atenção logo de início é a serenidade do autor ao falar do “desaparecimento” de seu pai em 1971 depois de torturado e assassinado no DOI-CODI e da gradativa perda de memória de sua mãe, que exigiu a mobilização dele e de suas irmãs para cuidá-la até seu falecimento três anos depois do lançamento do livro. Não é a serenidade que vem com a ignorância, mas sim, muito ao contrário, aquela que resulta da compreensão ímpar do ocorrido, tanto como parte de sua vida, quanto como parte da História do Brasil. Marcelo escreve coloquialmente, mas nunca de maneira deselegante e, talvez mais importante ainda, consegue construir seu texto como se fosse uma conversa com o leitor, algo que nos deixa imediatamente à vontade mesmo diante do que ele nos contas.

Sem seguir uma estrutura cronológica, as três histórias – para ser honesto, apenas as de seu pai e de sua mãe, pois a dele ele mantém em um mínimo tanto por já tê-la contado em seu primeiro livro, Feliz Ano Velho, quanto para evitar, creio eu, que ele dilua a força do que seus pais enfrentaram – são expostas como alguém efetivamente “puxando pela memória” para contar a um velho amigo suas lembranças mais felizes e, ao mesmo tempo, mais tristes da vida, com momentos temporais díspares aproximando-se e entremeando-se, trocas bruscas, mas lógicas de assunto e assim por diante, resultando no que posso com muita tranquilidade categorizar como a obra sobre assuntos difíceis mais fácil que já li. Fácil e gostosa, pois Marcelo realmente parece um amigo íntimo que acabei de encontrar depois de muitos anos sem vê-lo.

Mas em nenhuma circunstância o autor diminui o que viu, viveu e estudou. Há uma voz solene e até melancólica por trás de sua irresistível coloquialidade e de seu precisamente caótico vai-e-vem temporal em que ele consegue ir a fundo no que ocorreu com seu pai, reconstituindo, de seu jeito, toda a cadeia de eventos que o levou a ser preso, torturado e morto, cadeia essa que revela o quão pouco a vida valia nesse vergonhoso período por que passamos. E ele faz o mesmo com sua mãe, uma dona de casa que, de repente, se viu sozinha com seus cinco filhos, sem a certeza do que ocorrera com seu marido, sem acesso ao dinheiro das contas, que estudou Direito já na casa dos 40 anos e tornou-se não uma advogada qualquer, mas sim uma profissional do mais alto gabarito que realmente fez diferença para muitas pessoas e comunidades. O Alzheimer, que é o foco do começo e do final do livro como um artifício de enquadramento narrativo, também é explorada na minúcia e mesmo nessa luta interna efetivamente vivida por Marcelo do começo até o fim, o autor mostra-se sagaz e invejosamente lúcido e calmo em tudo o que conta, entregando mais do que apenas um relato, mas também uma verdadeira contribuição pessoal sobre como lidar com alguém sofrendo da doença.

A única escolha do autor que considero equivocada é o uso de citações, palavra por palavra, de variados relatos sobre o desaparecimento de seu pai, no estilo acadêmico de “dois pontos, abre aspas”. Creio que entendo perfeitamente o porquê dessa escolha, pois, assim, ele entrega a palavra diretamente a quem viveu (outras vítimas e alguns algozes da ditadura) e/ou a quem investigou (o Ministério Público Federal) o assassinato de seu pai, emprestando mais autenticidade ao que denuncia, mas tenho para mim que essa escolha, narrativamente, quebra a maravilhosa fluidez de seu texto em alguns momentos, pelo que teria sido melhor se ele ou recorresse a notas de rodapé ou, melhor ainda, adicionasse a integralidade dessas citações ao anexo que já existe em seu livro, absorvendo e usando as informações diretamente em sua prosa.

No entanto, esse é, sem dúvida alguma, um problema menor em Ainda Estou Aqui que, de outra forma, é um livro cativante da primeira à última página, do tipo que deixa o leitor triste não só pelos assuntos dolorosos que aborda, como também por chegar ao fim dessa inesquecível conversa com um grande amigo de anos que acabamos de conhecer por meio de palavras tão bem colocadas. Aliás, o poder do texto de Marcelo é tanto que parece que toda sua família ainda está aqui e que podemos conversar com eles – esses nossos amigos – quando quisermos.

Ainda Estou Aqui (Brasil, 2015)
Autoria: Marcelo Rubens Paiva
Editora: Editora Alfaguara
Data original de publicação: 04 de agosto de 2015
Páginas: 296

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