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Crítica | Ainda Estou Aqui (2024)

Uma família marcada pela ditatura.

por Luiz Santiago
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O caminho tomado pelo diretor Walter Salles em Ainda Estou Aqui (2024) é o de uma produção muito sóbria, sem grandes arroubos emocionais na dramaturgia, mas com um imenso componente sentimental e força política. O roteiro é inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, lançado em 2015. O escritor, dramaturgo e jornalista paulista é filho de Rubens Beyrodt Paiva, deputado federal pelo PTB entre 1963 e 1964, cassado durante a ditadura, exilado e, após retornar ao Brasil, preso e morto, em janeiro de 1971. São os bastidores familiares dessa história que o filme descortina, num drama histórico que aborda o nosso regime empresarial-militar sob a ótica da tortura e assassinato dos “inimigos do Estado”, com direito à famosa cota do único militar bonzinho (“eu só quero que a senhora saiba que eu não concordo com isso”) e um elenco inteiro com interpretações dignas de aplausos.

Sinceramente, minha expectativa em relação a este filme foi muito maior do que o prazer que ele realmente me proporcionou. Assisti à sua primeira exibição no Brasil, durante a 48ª Mostra SP, em uma sessão que contou com a presença do diretor e do par de protagonistas. Walter Salles entrega aqui uma obra de marcante qualidade técnica, mas com uma distância emocional tão profunda em relação ao tema, que o filme acaba transmitindo a sensação de ser desprovido de alma. Em essência, trata-se de uma produção séria, com atuações comedidas e uma atmosfera que rapidamente se revela densa e melancólica. Considerando o tom sombrio do enredo, seria justo esperar da direção um toque mais caloroso, atencioso e criativo ao retratar o cotidiano da família Paiva; uma forma mais expansiva de filmar as crianças, de captar as nuances nos olhares e gestos ao longo da narrativa e de trazer força não apenas para os momentos tristes e enraivecedores. Em vez disso, o filme oferece uma visão protocolar do Brasil dos anos 1970 sob o regime militar, preso a uma planificação esteticamente elaborada, mas emocionalmente estagnada.

Se há algo aqui que se sobressai é a qualidade do elenco e seu ótimo trabalho na criação dos personagens reais. Selton Mello (que tem mesmo uma impressionante semelhança com Rubens Paiva) está ótimo na pele de um homem rico, politizado e anti-fascista, que tenta manter escondida a ajuda dada às pessoas que precisam fugir da perseguição do regime, passando recados a familiares, amigos e camaradas. A outra faceta do personagem é a de um pai de família divertido, com projetos imobiliários em andamento e uma vida comum. A ilha de conforto financeiro e aparente isolamento das “garras dos milicos” na qual a família Paiva vivia é muito bem representada no tempo em que o ator está em cena, uma fase que muda por completo quando de sua prisão, trazendo ao filme um tom fotográfico mais escuro, interpretações ainda mais sóbrias e um pouco menos de alma e muita objetividade milimétrica por parte da direção, começando com a prisão de Eunice e Eliana Paiva (mãe e filha, respectivamente) e terminando com as reparações históricas vindas com a emissão da certidão de óbito de Rubens Paiva, em 1996, e as revelações que vieram à tona com a Comissão da Verdade, em 2012.

O trabalho de Marjorie Estiano como Eliana e de Guilherme Silveira como Marcelo (criança) também merecem destaque pela qualidade e magnetismo com que vivem esses indivíduos. Mas a estrela definitiva da obra, para quem todo o filme foi feito, é Fernanda Torres, que interpreta Maria Lucrécia Eunice Facciolla, uma das muitas mulheres que firmaram o pé contra a ditadura e estiveram à frente da luta contra “as falsas listas e os falsos positivos” manipulados pela burocracia estatal militarizada, a fim de ocultar prisioneiros, torturados e assassinados. Fernanda Torres não caiu na armadilha de estar o tempo inteiro chorando, descabelada, demonstrando desespero total na longa provação psicológica e teatro político que sua personagem protagoniza até o Estado brasileiro assumir que matou seu marido. É uma atuação com face de mármore, entalhada com muita dor, repleta de expressões certeiras, às vezes dolorosamente sutis, muito bem escolhidas para cada momento. É o aspecto do filme que tem mais impacto sobre o espectador, dada a progressão emotiva, rigor em cada movimento, tom de voz e expressão facial, além de postura de luta que a personagem assume em diferentes fases.

O último bloco de Ainda Estou Aqui é o mais fraco da fita, apesar da nuance de justiça social e reparação histórica que traz. A presença já alardeada de Fernanda Montenegro interpretando Eunice em idade avançada, afetada pelo Alzheimer, é um apenas cameo mudo que possui mais importância histórica para a dramaturgia brasileira do que qualquer outra coisa para o próprio filme. Aliás, a quebra que o diretor faz entre os eventos da melhor parte da obra (início e desenvolvimento) e o que acontece em 1996 (primeira parte da conclusão) já surge como um ato narrativo fraco, aquém de tudo o que vimos até aquele momento — inclusive esteticamente falando. No bloco final isso é ainda mais intenso, e o seu maior apelo é apenas a coroação de um cânone do cinema nacional e, talvez, o fechamento emotivo ausente no filme, com a família reunida após uma tempestade política que durou por décadas. Um tipo de compensação dramática que não precisaria acontecer, caso houvesse uma postura mais exigente e criteriosa da direção; e mais fluidez na estrutura do clímax e resoluções do enredo.

O bom desempenho da película nos festivais internacionais e a grande ansiedade no público brasileiro às vésperas de sua estreia são compreensíveis. O tema e alguns componentes importantes do longa são impagáveis, do elenco à trilha sonora, que conta com músicas essenciais para o recorte de tempo, indo de Como Dois e Dois (Roberto Carlos, 1971) até Fora da Ordem (Caetano Veloso, 1991). Ainda que a direção de Walter Salles não aborde todo esse momento e essa poderosa história com a paixão que tivera em outra trama familiar (Central do Brasil, 1998), o resultado ainda é de grande qualidade, digno de constar entre as nossas melhores produções contemporâneas, além de reacender o debate sobre a investigação, o julgamento e a punição dos agentes da lei, políticos, sociedade civil e militantes digitais que tentam recolocar no poder a miséria militar que massacrou o Brasil entre 1964 e 1985. Esta é a história de uma família, de uma mulher, de uma luta que parece estar mais viva do que nunca, e que nos lembra com muita melancolia que, em determinados tipos de sociedade e sistemas, nenhum direito conquistado está a salvo. É preciso lutar constantemente por eles. 

Ainda Estou Aqui (Brasil, França, 2024)
Direção: Walter Salles
Roteiro: Murilo Hauser, Heitor Lorega (baseado na obra de Marcelo Rubens Paiva)
Elenco: Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton Mello, Otavio Linhares, Maeve Jinkings, Marjorie Estiano, Antonio Saboia, Camila Márdila, Valentina Herszage, Humberto Carrão, Helena Albergaria, Dan Stulbach, Luiza Kosovski, Olívia Torres, Caio Horowicz, Gabriela Carneiro da Cunha, Maria Manoella, Carla Ribas
Duração: 136 min.

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