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Crítica | Agente Duplo (2020)

por Ritter Fan
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Apesar de não ser possível chamar o que acontece em Agente Duplo de reviravolta, diria que é mais interessante ao espectador ver o documentário chileno de Maite Alberdi sem saber nada sobre ele além da sinopse (ou nem isso), de forma a ter uma experiência mais completa como a que tive. Como é uma alteração de tom na obra que subverte a própria premissa, elegi abordá-la no presente artigo, pelo que aviso aos puristas que isso pode ser considerado spoiler, apesar de tecnicamente não ser. Portanto, fica o aviso aqui para quem quiser assistir em completa ignorância da obra parar de ler.

Essa mudança de tom, aliás, é algo que muito raramente acontece em documentários, mas que, quando acontece, costuma tornar a narrativa ainda mais interessante. O último filme documental que vi em que isso se deu – só que de maneira muito mais radical e assustadora – foi Tickled, obra realmente surpreendente e que é de deixar os pelos da nuca em pé. Agente Duplo não tem essa característica de assustar, mas o documentário certamente surpreende por começar de um jeito, deixar o espectador esperando desenvolvimentos na linha de sua premissa e, sem alarde e sem aviso, simplesmente trafegar por outro caminho, caminho esse emocionante e que é capaz de fazer qualquer um pensar sobre a vida e seu valor.

A base da narrativa é sem dúvida intrigante: o detetive Rómulo Aitken é contratado por uma mulher que nunca vemos para investigar como sua mãe tem sido tratada no asilo em que ela vive, pois há desconfiança de furtos e maus tratos. Para fazer isso, Rómulo passa a entrevistar uma série de senhores entre 80 e 90 anos para infiltrar um no asilo com equipamento de filmagem para servir de material de prova. Dentre os vários candidatos que respondem a um anúncio de jornal, o simpático senhorzinho de 83 anos e recém-viúvo Sergio Chamy é escolhido e passa a ser treinado no uso de equipamentos razoavelmente tecnológicos como câmeras escondidas em óculos e em caneta e também em equipamentos “triviais” para a população de outras gerações, como o smartphone e, claro, o aplicativo WhatsApp.

Há um lado comicamente simpático quando Sergio lida com “tecnologia”, evidenciando o abismo de gerações, mas, por outro lado, vê-se muito claramente, já nesse início, o que seria o mote da obra: a solidão. Sergio, ao trazer sua filha para a agência de detetives para que ela dê o aval a todo o procedimento que será necessário, especialmente a internação dele por três meses no asilo, com Rómulo passando-se por seu afilhado, evidencia que ele precisa fazer algo de sua vida e que esse tipo de oportunidade para alguém de sua idade é tão raro quanto encontrar diamantes na praia. Com toda sua ternura, ele acalma e emociona a filha – e nós, espectadores – ao dizer que ser um agente infiltrado lhe dará algum propósito em sua vida agora que sua esposa estava morta e que ele não queria ficar em frente a uma TV o dia todo.

Essa é, portanto, a verdadeira tônica do documentário, com a produtora/diretora/roteirista Maite Alberdi usando pouco mais dos 45 minutos iniciais, o que reputo como talvez tempo demais, para trabalhar a “trama” dentro da estrutura detetivesca que se espera pela sinopse, somente para Sergio começar a perceber que não há nada realmente tão errado assim com o asilo ou com o tratamento da mãe da cliente de Rómulo. O espectador, doutrinado a esperar alguma coisa chocante, não tem esse tipo de recompensa e pode ser frustrante – mas deveria ser um alívio, na verdade – constatar que o local é muito bem cuidado e que as vovozinhas que lá moram (são 40 mulheres para apenas quatro homens) vivem a melhor vida possível naquelas circunstâncias.

Sergio, ativo, inteligente e perfeitamente no controle de suas faculdades mentais, logo se torna a sensação do local, fazendo amizades constantemente e genuinamente preocupando-se com as pessoas de lá e constatando – e é aí que o coração do espectador começa a ser apertado pelas lentes de Alberdi – que o grande problema do asilo não é o asilo, mas sim o abandono de seus habitantes por seus filhos, filhas, netos e netas. Se Sergio tem a sorte de ter uma família muito próxima, com filhos que realmente se preocupam com ele, ele percebe que sua realidade é muito diferente daquelas senhoras ao redor dele, uma exceção mesmo. E, na medida em que ele se dói por isso, fazendo de tudo – muito mais do que se espera – para acalentar corações rachados pelo abandono e pela solidão, nós nos doemos junto com ele, o que torna difícil continuar assistindo.

Agente Duplo é, portanto, um grande tapa na cara, um serviço de despertador que vem para nos incomodar, para escancarar as portas da fragilidade da vida, da importância de aproveitarmos cada segundo dela, seja com a idade que tivermos e, principalmente, da importância de olharmos ao nosso redor, primeiro para nossa família, mas não parando por aí, para notarmos entes queridos que, por questões de conveniência, de mesquinharia, de egoísmo, são relegados ao esquecimento e a um sofrimento indizível. Um dia – e não demorará muito, podem ter certeza – será nossa vez de entrarmos nesse círculo vicioso e sermos afastados do convívio familiar, algo que só pode ser quebrado ou impedido se fizermos todo o esforço possível para integrar nossas vidas às dos mais idosos ao nosso redor.

Agente Duplo (El Agente Topo – Chile/EUA/Alemanha/Holanda/Espanha, 2020)
Direção: Maite Alberdi
Roteiro: Maite Alberdi
Com: Sergio Chamy, Romulo Aitken, Marta Olivares, Berta Ureta, Zoila Gonzalez, Petronila Abarca, Rubira Olivares
Duração: 84 min.

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