Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | Afrescos de Kiev

Crítica | Afrescos de Kiev

O que sobrou de um longa-metragem sobre a História da capital ucraniana.

por Luiz Santiago
253 views

Em 1966, Sergei Paradjanov, em meio a uma revolução artística pessoal, presenteou o mundo com Afrescos de Kiev, pisoteando as limitações político-ideológicas de sua sociedade para criar um interessantíssimo espetáculo visual que, infelizmente, não temos por completo. Concebido como um teste de estilo, na linha de mudanças que ele já tinha apresentado dois anos antes, em Sombras dos Ancestrais Esquecidos, e que foi finalmente aplicado em plenitude no seu longa-metragem seguinte, A Cor da Romã, Afrescos de Kiev é marcado por uma beleza melancólica e enigmática, um testemunho da genialidade (aqui censurada) de Paradjanov, e o prenúncio de um futuro muito problemático com as autoridades de seu país.

Originalmente concebido como um longa-metragem, o filme foi interrompido pelos produtores do Goskino, o Comitê Estatal de Cinematografia responsável pela produção da Sétima Arte na URSS, que via com crescente apreensão a mudança estilística de Paradjanov. A estética singular do diretor, que se afastava do realismo soviético em favor de uma linguagem visual mais poética e experimental, era interpretada como potencialmente subversiva, talvez “pequeno burguesa”, uma quebra com a ortodoxia artística da União Soviética, que tinha, em seu próprio realismo, o alinhamento padrão para os filmes produzidos no país. A questão é que este modelo não funcionava para obras tão imensamente simbólicas como as que o artesão armênio ansiava produzir.

Do filme, resta apenas esta colagem de 14 minutos, feita com o que sobrou dos negativos destruídos. Vemos desenrolar, segundo a concepção do diretor, a enigmática História da capital ucraniana. Mesmo incompleto, o filme é um triunfo do espírito criativo, com imagens que evocam a guerra, a música, a pintura, a rotina cansativa dos cidadãos de Kiev, a libido e os incômodos psicológicos que afetam a cada um. O diretor transforma fragmentos do passado em uma tapeçaria visual rica de significado e beleza, um mundo onírico onde o ontem e o hoje se fundem numa dança hipnótica.

É precisamente essa natureza fragmentada, a sensação de um potencial não realizado, que confere ao filme a citada aura de melancolia. As imagens, como memórias desfragmentadas, evocam a gloriosa cidade representada de maneira cifrada, um sonho que prende o espectador ao que está passando na tela, desfilando imagens belíssimas, fotografadas com disposição inimaginável dos objetos pelo cenário, sem ter a necessidade de diálogos ou explicações para o que está acontecendo. O uso de músicas não tradicionais também chamam a atenção, marcando uma das muitas diferenças com A Cor da Romã, além da abordagem visualmente mais contemporânea.

Dado o seu contexto de produção, Afrescos de Kiev transcende sua condição de simples filme. Através dele, contemplamos a força da arte em face à adversidade e o impacto da censura sobre a liberdade criativa. A história de sua criação, marcada pela destruição parcial e pela sombra daquilo que poderia ter sido, amplia seu significado e nos faz imaginar a obra completa, concebida por Paradjanov. Cada imagem se torna um fragmento de um sonho interrompido, um apelo à reflexão sobre o preço da liberdade artística e sobre a quebra dos padrões estabelecidos por uma sociedade.

Afrescos de Kiev (Киевские фрески / Kiyevskiye freski / Kyiv Frescoes) — URSS, 1966
Direção: Sergei Paradjanov
Roteiro: Sergei Paradjanov, Pavlo Zagrebelny
Elenco: Tengiz Archvadze, Antonina Leftiy, Vija Artmane, Afanasi Kochetkov, Igor Tamrazov
Duração: 14 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais