É curioso como assistir a um filme tendo informações prévias sobre ele pode afetar a nossa experiência com o mesmo, o que inclui até saber seu gênero. Esse foi o meu caso com Açucena, longa que abriu a Mostra Aurora na 24ª edição da Mostra Tiradentes. Ao longo da narrativa, pensei que se tratava de uma obra ficcional, com a descoberta de ser um documentário apenas quando li sua ficha técnica, posteriormente. Refletindo sobre essa “confusão” de minha parte, penso que a camuflagem do documental como ficcional vai de perfeito encontro com a própria história que está sendo contada.
Afinal, ao longo do filme, se acompanha a preparação da festa de aniversário de Açucena, uma idosa de 67 anos que comemora, todo ano, seus 7 anos, cujos preparativos envolvem a arrumação de diversas bonecas, parte de um esforço comum de todos que vivem nas redondezas. Se essa ritualização com as bonecas pode ser encarada com estranhamento para um espectador ocidental (o meu caso), porém, ela é tratada com muita seriedade pela encenação de Isaac Donato e sua equipe, com um formalismo que abre espaço para o invisível encontrar o visível. É justamente por isso que me parece fazer muito sentido essa “máscara” ficcional, uma vez que o mote central de Açucena também é sobre esse encontro entre a descrença do espectador com a crença do próprio filme, um jogo de cessões e concessões por parte de ambos, onde cada plano desafia o espectador para que ele sinta que há algo além do que ele vê numa primeira camada (bonecas sendo arrumadas).
Entre tantos jogos de o visível e o invisível que Açucena propõe, o principal deles envolve a personagem-aniversariante que leva o título do filme. Quem é Açucena? Ela aparece em algum momento? Será que ela é aquela personagem que está na loja de brinquedos e some? Ou aquela senhora brincando com a boneca? Ela se personifica nas bonecas? Ainda que a edição de Tiradentes esteja sendo online e lamentemos a falta de um burburinho e aglomeração pós-sessão, este pequeno mistério levantado, pelo menos na minha roda de colegas críticos, está gerando um certo debate que só comprova empiricamente como cada um teve uma visão particular sobre quem (ou o que) é Açucena. Pessoa ou entidade, sua presença se revela a partir de sua não presença — outros filmes que trabalham bem esse tema: A Assistente; Oroslan. Assim, a identidade de Açucena vai sendo construída a partir dos diálogos sobre ela, de sua casa (que, tal como ela, vai sendo revelada progressivamente pela decupagem) peculiarmente rosa e sua coleção de bonecas. Trata-se de uma força que ocupa os espaços invisivelmente, que também é realçada pelo modo como a câmera é posicionada em alguns planos, sempre atrás de alguma coisa (planta, prateleira, bonecas).
Por outro lado, me fascina como Açucena pode ser interpretado de maneira ambígua dependendo da bagagem de vida de cada pessoa e, por isso, pode ser extremamente desafiador para nossos preconceitos. Por exemplo, eu, que não tenho contato com religiões no meu dia-a-dia a não ser a católica ou judaica, inicialmente me deparei com uma certa estranheza diante desse culto às bonecas quase que como seres personificados. Cheguei a pensar que se tratava de um filme de terror, enquanto muitos colegas me apontaram que sentiram drama. Por qual motivo meu cérebro associou como assustador essas práticas? Reflito que talvez exista uma memória visual gerada pela indústria de cinema norte-americana que frequentemente se utiliza de bonecos como artifícios para convocar o sobrenatural em suas obras de terror, o que gerou essa associação involuntária na minha mente de espectador colonizado. Então, de certo modo, se todo filme almeja ser transformador em sua experiência, penso que Açucena foi extremamente bem sucedido em me fazer questionar diversas visões de mundo e Cinema que eu já havia me deparado até aqui.
Açucena — Brasil, 2021
Direção: Isaac Donato
Roteiro: Isaac Donato e Marília Cunha
Elenco: Guiomar Monteiro, Ceres Monteiro, Edite de Jesus, Duda Monteiro, Rosalvo Bonfim, Valda França, Ana Paula de Santana, Seu Zé
Duração: 71 mins.