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Crítica | Aconteceu em Woodstock

por Fernando JG
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Muitas coisas se destacam no modo como Ang Lee conduz os seus filmes, mas o que chama a atenção, especialmente, é a sensibilidade que toca toda a atmosfera fílmica ao longo de algumas de suas melhores produções. Imagem e enredo se conectam de uma maneira tão profunda, produzindo cenas tão harmônicas e deleitosas, que é impossível não reconhecê-lo por sua ousadia. No seu primeiro Oscar, quando ganhou a estatueta por roteiro adaptado, na ocasião do Razão e Sensibilidade, Ang Lee já concorria por fotografia e figurino. Depois disso, veio O Segredo de Brokeback Mountain e o incrível As Aventuras de Pi – todos com um cuidado estético notável. Com uma adaptação de uma obra literária (Taking Woodstock: A True Story of a Riot, a Concert and a Life), Ang Lee entrega uma leitura visual de Woodstock através de uma viagem imaginativa e engenhosa, retrabalhando um tema bem comum, mas com uma distinção imensa. 

O enredo do filme se desenrola através do retorno de Elliot Tiber (Demetri Martin, que está ótimo no papel), do centro de Nova York para o campo a fim de tentar ajudar os pais à beira do despejo. Os pais, que têm um hotelzinho, não conseguem mais pagar as finanças devido ao baixo movimento local. Para resolver a situação, Elliot oferece uma extensa área no “quintal de casa” para a promoção de um festival de música, como todos os anos, em que geralmente pequenos grupos vão se apresentar, movimentando a economia da região. O que ele e nem ninguém esperava é que mais de meio milhão de pessoas fossem atraídas para o evento. A região familiar de White Lake, durante três dias, virou de cabeça para baixo. 

Quando saiu em Cannes, o longa ganhou prestígio muito rápido, sobretudo por invocar um espírito, uma espécie de zeitgeist, dos anos 60, mais especificamente dos anos de 1969 e da geração hippie. A icônica cena da viagem psicodélica feita pelo protagonista ao ingerir um ácido foi muito comentada pelo seu efeito de verossimilhança e é a grande cena do longa-metragem. Com uma duração de 7 minutos, esse corte faz uma representação perfeita da realidade subjetiva do instante da alucinação, resultando em uma ilusão de perspectiva impecável. A construção estética ao redor do momento, com contrastes realçando as cores e as imagens em movimento, faz a gente imergir dentro da trip, e como não bastasse, a trilha sonora The Red Telephone casa exatamente com a cena. A viagem psicodélica do protagonista, uma das melhores representações que eu já vi no cinema, tem um efeito de transformação para o próprio personagem, causando uma metanoia, que é a mudança de um estado de alma para outro. É evidente que estes são os efeitos de um ácido, mas na narrativa isso vai além. Após a trip, ele muda totalmente suas concepções e deixa de ser o filho mimadinho, cuidado pela mãe, como um garotinho do campo, para se libertar e se tornar livre das amarras parentais, abrindo caminho para a sua emancipação como um sujeito no mundo.

Apesar de ser um filme bem estereotipado – e acho que não teria como ser diferente -, Ang Lee consegue explorar bem as diversas facetas dos jovens do período da contracultura. O cineasta não esquece as movimentações político-sociais que formaram o clima norte-americano daqueles anos e traz para a cena a crítica à guerra, o pacifismo, o senso de comunidade, entre outros. Ao mesmo tempo em que o filme enfoca na trama entre os personagens, existe uma tendência à universalização da trama, ou seja, de tentar abarcar o festival como um todo, fazendo com que a gente veja bastante essa aura Woodstock e as ideais culturais vigentes. A construção das personagens é bem peculiar e tem força na atuação dos atores. Imelda Staunton, que faz o papel de Sonia, a mãe, está espetacular. Ela é uma atriz muito versátil, conseguindo atuar em diversas frentes, seja no drama, na comédia, na ação. Aqui, ela esbanja talento e segura bem as pontas. O aparecimento, mesmo que breve, de Paul Dano na cena da viagem psicodélica é fundamental, oferecendo uma presença na narrativa. Ainda que com dez minutos de tela, o seu personagem convence e muito bem. Sem forçar uma chapação desnecessária, ele conduz o seu personagem de modo suave e verossímil.

O filme mescla os gêneros cinematográficos e entrega um drama com toques refinados de comédia, conseguindo arrancar bons sorrisos. Ao longo do filme, a ideia de uma harmonia garante todo o fio narrativo e aos poucos tudo se mescla de acordo com a questão da “paz e amor” tão pregada naqueles anos. O desenvolvimento sexual de Elliot é surpreendente e a direção em momento algum exibe a sua sexualidade de modo explícito, mas a conduz passo a passo, entregando pistas, dicas, até percebermos a sua afetividade com os outros rapazes. A mensagem de que o exterior não é importante, e o que importa é a essência, é trabalhada no curso da trama. A sexualidade, que era para ser um peso, afinal, estamos falando da década de 60, aqui, não é nada mais do que um aflorar de sentimentos pelo próximo. Liev Schreiber, que interpreta uma protagonista transsexual decepcionada com a carreira de soldado na guerra, apesar de cair em algum clichê do gênero, monta uma personagem muito sólida e consistente, sendo uma das grandes figuras do enredo. O longa-metragem – por meio de uma ótica que não é a da documentação do festival, e sim a de um personagem que o organiza mas não o assiste – consegue suscitar e discutir os grandes aspectos que estavam em torno da atmosfera Woodstock, sem pesar a mão e nem cair no lugar-comum das drogas e do sexo.  

No fim, Ang Lee cria uma história sobre a trajetória de um homem que está em plena mudança interior, rumo a um processo de amadurecimento e aprendizado, e que se depara com esse grande acontecimento que é Woodstock bem ali na sua frente. Vivenciando o centro do universo, Elliot se encontra em definitivo e muda o curso da sua vida para sempre, empurrando o enredo do filme para que ele finalize com a sua partida, fechando um ciclo que é, naquele momento, a etapa mais importante e formativa da sua caminhada.

Aconteceu em Woodstock (Taking Woodstock, EUA, 2009)
Direção: Ang Lee
Roteiro: James Schamus
Elenco: Demetri Martin, Emile Hirsch, Jonathan Groff, Eugene Levy, Imelda Staunton, Dan Fogler, Skylar Astin, Damian Kulash, Henry Goodman, Jeffrey Dean Morgan, Liev Schreiber, Paul Dano, Kelli Garner
Duração: 120 min. 

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