Em Cinema e História, Marc Ferro aponta que um filme pode ser considerado uma investigação histórica, tendo no bojo de suas contribuições, ser fundamental para a compreensão da história do presente, haja vista o entendimento dos processos que a compõem. O autor afirma que no caso dos filmes, o valor pode ser considerado o mesmo ao compararmos com romances e estudos acadêmicos.
Assim, no processo de transcrição cinematográfica, o cineasta fornece a sua visão da história, descortinando acontecimentos concebidos em momentos distintos por outros. Em 1998, depois de comprovar a sua capacidade de orquestração da linguagem cinematográfica, o cineasta Beto Brant se reuniu novamente aos criativos Marçal Aquino e Renato Ciasca para a construção deste filme que é uma poderosa alegoria memorialística de um país marcado pelas atrocidades da ditadura militar.
Com inserção dos abusos dos militares através de flashbacks dos ex-militantes, o filme estabelece uma linguagem desordenada e atemporal, bem característico dos traumas marcados nas trajetórias dos personagens. Direto e dinâmico, o filme trata de quatro figuras centrais e um “antagonista”: Miguel (Zé Carlos Machado), Paulo (Carlos Meceni), Elói (Cacá Amaral) e Oswaldo (Genésio de Barros), homens que após uma tentativa frustrada de assalto à banco, foram torturados por Correia (Leonardo Villar).
Para piorar o trauma, o militar não poupou Lúcia (Anthís Melina), namorada de Miguel, mulher que estava grávida e acabou falecendo por conta dos limites físicos extrapolados durante a tortura. Vitimada depois de uma agonizante sessão com o método da “coroa de Cristo”, a moça não suportou as dores e morreu, juntamente com o bebê, situação que alarga ainda mais o projeto de vingança de Miguel, já que ele descobriu, 25 anos depois dos fatos, que Correia não está morto.
Os planos? Armar uma emboscada e vingar-se do torturador. Motivado pela vingança pessoal, o personagem pouco se importar com questões de cunho político. Seu trauma é tanto pessoal quanto histórico, mas o que está em jogo é o “olho por olho” comum aos vingadores de nossa história cultural, repleta destes tipos que anseiam pela justiça com as próprias mãos.
Os créditos iniciais atmosféricos estabelecem o clima, numa jogada de abertura pouco comum ao cinema produzido no Brasil até então. Com uma interessante construção memorialística do período ditatorial dos brasileiros (1964-1985), a trama ressalta temas caros ao nosso passado relativamente recente, tais como o trauma, o ressentimento e as várias facetas da violência,
Osvaldo não tem interesse em participar da vingança, enquanto Paulo aparentemente se esqueceu do passado, ambos diferentes de Miguel, cego pela revanche, também destoante de Elói, que parece ter motivos para não participar da empreitada. O problema é que como todo e bom plot twist, o torturador afirma que entre eles há um traidor, pois se não fosse esta fruta podre do grupo, ele não os teria capturado.
E agora? É assim que o bem elaborado roteiro de Marçal Aquino, Renato Ciasca e Beto Brant vai promover uma série de desentendimentos e crimes impensáveis dentro do próprio grupo. Um encontro aparentemente idílico de pesca se transforma numa experiência tão devastadora quanto as torturas do passado, recalcadas no imaginário dos envolvidos.
No já clássico Entre memória e história: a problemática dos lugares, de Pierre Nora, o pensador francês alega que filmes são concebidos como “lugar de memória”. Já que a mídia nos fixou no efêmero e contribuiu para o que ele chama de esfacelamento da memória, o cinema surge como uma espécie de “reservador de lugares”. Assim, então, podemos conceber Ação Entre Amigos, como um filme que possui todos os atributos do que Walter Benjamin chamou de função social do cinema, isto é, um aparato instigador de reflexões. Claro que Benjamin falava de um contexto emancipador da arte, livre da exploração capitalista, mas dentro do que conhecemos como “salvas as devidas proporções”, os pensamentos do grande nome da Escola de Frankfurt merece todo o nosso acolhimento, principalmente diante de filmes com este potencial.
Ação Entre Amigos — Brasil, 1998
Direção: Beto Brant
Roteiro: Marçal Aquino, Beto Brant,
Elenco: Cacá Amaral, Carlos Meceni, Douglas Simon, Genésio de Barros, Heberson Hoerbe, Leonardo Villar, Melina Anthís, Rodrigo Brassoloto, Sérgio Cavalcante, Zecarlos Machado
Duração: 76 min