Mesmo que não tenha a alta periculosidade de um tubarão, tampouco a ferocidade de um urso ou felino de grande porte, os ratos causam angústia e funcionam bem se orquestrado com dignidade na seara das narrativas de horror ecológico. O motivo é simples. Tal como o pavor de baratas, seres que podem trazer doenças e outros perigos, mas não causam estragos em seus momentos de ataque a sobrevoar ou correr dentro de ambientes domésticos, os ratos causam nojo e repulsa por circularem em esgotos e representarem a podridão de nossa sociedade. Alegóricos para pensarmos questões comportamentais, os roedores distantes das espécies domesticadas ou os bonitinhos de laboratório fedem, são ardilosos, infiltram-se de maneira ousada em espaços urbanizados e se proliferam como quase nenhuma outra espécie do reino animal. Em suas jornadas pela extensa malha de nosso imaginário cultural, esses bichos são altamente simbólicos, tomados por alegorias utilizadas muito bem em A Vingança de Willard, refilmagem de Calafrio, clássico do horror da década de 1970 sobre um homem com dificuldade de relacionamentos e oprimido socialmente, tendo na amizade com os ratos que habitam a sua casa, a chave para dar continuidade a sua trajetória de vida bastante peculiar. E insana, agora com projetos de vingança.
Diante do exposto, cabe também o questionamento: seria A Vingança de Willard uma refilmagem ou nova adaptação do romance Vingança Diabólica, de Stephen Gilbert? Um tópico para pensar, pois apesar de pensarmos sempre dentro dessa lógica da nova manufatura de uma história mais antiga para as plateias mais contemporâneas, o filme também é uma versão atualizada do ponto de partida literário que serviu de base para a escrita do clássico retomado. Desta vez, o projeto foi assumido por Glen Morgan, conhecido por criar a franquia Premonição e assumir alguns episódios da série Arquivo X. Na cadeira de diretor, Morgan também assumiu o texto dramático, escrito em parceria com Gilbert Ralston, material que parece ter sido criado por encomenda para a interpretação de Crispin Glover, ator que cai no papel como uma luva numa mão devidamente acertada. Conhecido por interpretar personagens “estranhos” desde Sexta-Feira 13 Parte 4, o interprete de Willard para os anos 2000 cumpre um bom trabalho e resgata traços da narrativa de 1971 para a atualidade, retratando questões como bullying, corrupção familiar e a extensão labiríntica da mente humana, representada pelos ratos Ben e Sócrates.
Lançado em 2003, A Vingança de Willard nos apresenta o personagem em questão, desajustado e inquieto. Ele mora com a mãe, uma senhora em estado decrépito, mulher opressora que o angustia cotidianamente com cobranças e pondo defeitos constantes em tudo que o rapaz faz. Para ela, já passou do tempo e Willard já deveria ter uma namorada. No entanto, ela reforça o tempo inteiro que não há condições favoráveis para o filho se relacionar com ninguém, haja vista a estranheza extrema do jovem rapaz. Com uma infestação de ratos no porão da casa, as fobias do personagem aumentam ainda mais e ele segue numa jornada para a resolução da praga doméstica que ainda não se apresentou devidamente. Os roedores, escondidos, vão se mostrar cada vez mais astutos. E também perigosos. Mortais mais adiante. Willard conhece inicialmente Sócrates, o ratinho branco, um ser comedido e comportado. A história desce ladeira psicológica abaixo com a chegada de Ben, o rato negro destrutivo, suposta representação do lado obscuro da mente do personagem, dualizada pelo rato branco bonzinho. É tema para dar pano pra manga nas discussões raciais contemporâneas, material narrativo inflamável e com possibilidade de gerar polêmicas caso fosse lançado e discutido mais atualmente, afinal, por mais que estejamos bem próximos de 2003, muita coisa mudou no mundo de lá pra cá. Caso fosse refeita, creio que essa história talvez ganhasse uma nova abordagem, mais cuidadosa neste aspecto.
Enfim, deixando as questões polêmicas de lado, A Vingança de Willard nos mostra a gradual amizade com o primeiro rato, a chegada do segundo, uma criatura arredia ideal para atender aos anseios do protagonista que usará Ben como mentor de seu projeto de revanche contra as pessoas que tornaram e ainda tornam a sua vida um inferno diário. O Sr. Martin (R. Lee Ermey) é um dos pertencentes desta lista de ódio, homem que assumiu a empresa de sua família após a morte de seu pai, posicionado como chefe e atual algoz do pacato Willard. A chegada de Cathryn (Laura Elena) pode até mudar algumas coisas na trajetória do personagem, mas nem a doce e atenciosa jovem tem a capacidade de mudar os rumos do projeto ambicioso do rapaz. Assim, o filme discute de maneira humorada, tópicos sobre civilização e instinto, material que rende ótimas discussões psicanalíticas. É um debate presente no texto e muito bem desenvolvido visualmente, haja vista o bom trabalho da direção de fotografia de Robert Mclachlan, certeira no uso de filtros e na movimentação pelos espaços concebidos por Mark S. Freeborn, design de produção que assina o setor e gerencia os ótimos cenários de Mark Lane e a detalhista direção de arte de Catherine Ircha. Ademais, a mescla de efeitos visuais e especiais dá conta do recado na criação de uma atmosfera assustadora e imersiva, reforçada pela composição musical de Shirley Walker, também densa e com momentos rítmicos que flertam com o humor. E sim, “Willard” para as plateias do século XXI talvez seja o único horror ecológico de luxo que envolve a presença dos ratos no cinema.
Roteiro: Glen Morgan, Gilbert Ralston, Stephen Gilbert
Elenco: Crispin Glover, R. Lee Ermey, Laura Harring, Jackie Burroughs, Ashlyn Gere, David Parker, Ty Olsso
Duração: 100 minutos