Os anos 70 começaram de maneira muito diferente do usual para Billy Wilder, ainda que ele tenha inegavelmente levado um sonho à fruição, adaptar Sherlock Holmes para o cinema, algo que ele tentara duas vezes antes, na forma de musical, e só realmente conseguiu com uma versão não-musical, de verve satírica, em sua prolífica parceria com I.A.L. Diamond no roteiro. Mas A Vida Íntima de Sherlock Holmes é, sem dúvida, um Wilder pouco característico, mesmo que o olhar clínico do diretor esteja muito claramente presente na forma como ele trabalha seus enquadramentos e na riqueza dos detalhes de época que trazem o famoso personagem de Arthur Conan Doyle – em versão amalgamada entre literatura, cinema e TV, claro – à vida.
A produção era para ter sido muito mais longa do que acabou sendo, já que o plano inicial era uma caríssima distribuição da produção de quase três horas (o primeiro corte tinha 200 minutos!) no formato Roadshow, cheia de pompa e circunstância, com direito a intervalo e com uma estrutura episódica contando histórias originais criadas por Wilder e Diamond. No entanto, apesar de toda a filmagem ter sido feita ao longo de nada menos do que seis meses ao custo exorbitante de 10 milhões de dólares, a United Artists reformatou a ambição do projeto para “caber” na exibição normal cinematográfica em razão de problemas financeiros por que passava, com Wilder, então, cortando histórias inteiras de seu longa que, infelizmente, jamais foram integralmente reinseridas na película mesmo depois dessas décadas todas.
A premissa original lidava com a abertura de uma cápsula do tempo pelo neto do Dr. John H. Watson, 50 anos após sua morte, em que diversas histórias que ele escrevera sobre seu grande amigo Sherlock Holmes permaneceram sem publicação em razão de seu conteúdo mais, digamos, audacioso, que poderia afetar a reputação do grande detetive. Essa “primeira história”, no presente do longa, abriria espaço para que os episódios quase que completamente independentes se seguissem. Com a alteração do escopo de lançamento do filme, Wilder retirou a primeira história, mantendo a ideia de uma cápsula do tempo sendo aberta com textos não publicados sobre Holmes que imediatamente nos leva a duas histórias, a primeira bem curta e que mais parece uma vinheta alongada e outra que, aí sim, tem mais a “cara” de um longa-metragem.
Na tal vinheta alongada, Watson (Colin Blakely) convence um entediado Holmes (Robert Stephens) a aceitar um misterioso convite para assistir a uma montagem de O Lago dos Cisnes que se revela como uma armadilha da bailarina principal, a russa Madame Petrova (Tamara Toumanova), já de meia idade, para “capturar” o grande detetive de forma que ela possa ter um filho “genial” com ele. A oportunidade de ouro dessa história é lidar, jocosamente, com a sexualidade de Holmes, claro, mas com uma abordagem interessantemente liberal e vanguardista sobre a homossexualidade, mesmo que debaixo de uma estrutura claramente cômica que opõe um Holmes em uma sinuca de bico complicada a um Watson esbaldando-se com as bailarinas russas na festa de encerramento do balé. E, como tudo que vale mais, essa “vinheta” acaba muito cedo, deixando aquele gostinho de quero mais.
Em seguida, mesmo que sem solução de continuidade, vem o filme propriamente dito em que uma misteriosa e belíssima mulher inicialmente sem memória, mas que se revela como sendo a belga Gabrielle Valladon (Geneviève Page), busca a ajuda de Holmes para localizar seu marido que teria desaparecido em uma mina na Escócia. Se a sexualidade de Holmes é desafiada na primeira parte, aqui a abordagem é claramente romântica, ainda que daquela maneira mais contida e platônica que nos acostumamos a ver quando se fala do personagem. O caso em si é cheio de reviravoltas que envolvem, claro, Mycroft Holmes (Christopher Lee, um pouco “amarrado” demais) e até mesmo a Rainha Vitória (a fofíssima Mollie Maureen), com um roteiro que não sabe muito bem quando parar ou ser objetivo em seus longos e verborrágicos devaneios explicativos.
Ironicamente, enquanto a primeira história é curta demais, a segunda é longa demais e, pior, sem uma estrutura climática que crie um encerramento à altura de toda a preparação que é feita pelo encadeamento de acontecimentos. Além disso, a veia cômica vista inicialmente vai esfriando e a relação Holmes-Watson passa a depender de uma rotina de Abbott e Costello que Stephens e Blakely não conseguem tirar todo o proveito possivelmente por Wilder não parecer muito decidido em como abordar os imortais personagens, se de maneira autoconsciente e carregada de tom paródico ou se cambando mais para o drama, o que acaba criando alterações tonais grandes demais que fragmentam ainda mais a demorada narrativa.
Talvez em sua concepção original A Vida Íntima de Sherlock Holmes fosse um filme de altíssima qualidade de Wilder. Com as tesouradas generosas a que o cineasta foi obrigado pelo aperto financeiro do estúdio, o longa, apesar de ser visível o carinho com os personagens, acabou enrolado em sua própria estrutura, sem cumprir realmente bem sua tarefa nas duas histórias que tenta contar. Espero, sinceramente, um dia, ainda ser capaz de assistir a versão realmente completa do longa, se é que o material cortado realmente ainda existe completamente e não nas versões razoavelmente mutiladas que foram lançadas aqui e ali ao longo dos anos.
A Vida Íntima de Sherlock Holmes (The Private Life of Sherlock Holmes – Reino Unido/EUA, 1970)
Direção: Billy Wilder
Roteiro: Billy Wilder, I.A.L. Diamond (baseado em personagens criador por Arthur Conan Doyle)
Elenco: Robert Stephens, Colin Blakely, Geneviève Page, Christopher Lee, Irene Handl, Clive Revill, Tamara Toumanova, Stanley Holloway, Mollie Maureen, Catherine Lacey, James Copeland, Peter Madden, Michael Balfour, Robert Cawdron, Alex McCrindle, Frank Thornton
Duração: 125 min.