Horror e fascínio. Essas duas reações aparentemente antagônicas são provavelmente inevitáveis depois de assistir A Vida em Mim, uma péssima versão em português tanto para o título em inglês (A Vida Me Ultrapassa) quanto em sueco (As Crianças Apáticas) do curta-metragem que aborda a Síndrome da Resignação, condição que afeta crianças e adolescentes traumatizados e as coloca em um sono profundo semelhante ao coma. Em 40 minutos, os diretores John Haptas e Kristine Samuelson correm para apresentar a estranhíssima situação, usando três crianças afetadas pela doença na Suécia.
O horror vem pela situações em si. Vemos as crianças inertes tendo que ser tratadas constantemente pelo pais, com alimentação via tubo no nariz e massagens e exercícios constantes para evitar atrofia muscular, isso sem falar em passeios, banhos e tudo mais para dar um semblante de vida digna aos pequenos. O horror também vem pelos breves comentários sobre o que cada família de minoria étnica enfrentou em seus países de origem, no caso na União Soviética e nos Bálcãs, algo que enfocado apenas muito brevemente para dar contexto ao pedido de asilo na Suécia e a doença das crianças, aparentemente também conectada com a incerteza sobre a legalização de seu refúgio no país escandinavo, o que pode significar a necessidade de retorno para o inferno de onde vieram.
O fascínio vem pela síndrome em si, pelo que tudo indica uma espécie de mecanismo de defesa involuntário que afasta as crianças da realidade, tornando mais “fácil” (para elas) seu enfrentamento. No entanto, pouco se sabe de verdade sobre as causas da doença e o porquê da existência de uma concentração maior justamente na Suécia, ainda que existam casos também em outros países. Há depoimentos de médicos e cientistas ao longo do curta, mas muito pouco é realmente dito além da conexão da violência e incerteza na vida das famílias com o tal coma auto-induzido de algumas das crianças.
Se o horror fica bem estabelecido no pouco tempo de duração da obra, o fascínio pede mais e quase nada vem em resposta. O lado científico ou mesmo sócio-político da coisa é pouco trabalhado, com o texto insistindo em colocar a Suécia contra a parede, dizendo que o país simplesmente tem que dar asilo a todas as famílias imigrantes que pedirem. Sei muito bem que a onda de imigração é um problema mundial de difícil resolução e que muitos países têm criminosamente se fechado ao recebimento de refugiados. Não é, porém, o caso da Suécia, mas os diretores parecem não se importar muito e pintam o país com toda a frieza possível, inclusive ao usar belíssimas tomadas de drones de paisagens congeladas.
Em outras palavras, no lugar de saciar a curiosidade do espectador abordando, por exemplo, casos de Síndrome de Resignação que existem hoje em campos de refugiados na Austrália ou o porquê de a concentração se dar na Suécia com imigrantes do leste europeu ou, mais ainda, voltando ao passado com situações semelhantes descritas tanto nos anos 90, como também em campos de concentração nazistas na Segunda Guerra Mundial. Nada disso é mencionado e eu só sei porque pesquisei pós-documentário.
Pode ser que esse não tenha sido o objetivo dos cineastas, mas A Vida em Mim ficou incompleto sem que pelo menos essas questões fossem resvaladas no lugar de tentar dizer que a Suécia é intolerante nas entrelinhas (ou não tão nas entrelinhas assim). A solução mágica não me parece ser simplesmente a abertura indiscriminada de fronteiras, mas os diretores parecem achar que é e, com isso, retiram um pouco do peso que seu curta poderia ter.
Mesmo falhando em aprofundar a narrativa na questão principal, A Vida em Mim abre nossos olhos para as consequências nefastas da onda de refugiados nas crianças. Não bastassem as bombas, os ataques químicos e toda a violência física e psicológica como espancamento, tortura e estupro, aqueles que conseguem escapar ainda precisam enfrentar uma condição que, ironicamente, parece ter sido tirada de contos de fada justamente para crianças. Fascinante, sem dúvida. Mas horrível.
A Vida em Mim (Life Overtakes Me/De Apatiska Barnen, Suécia/EUA – 2019)
Direção: John Haptas, Kristine Samuelson
Com: Henry Ascher, Nadja Hatem, Mikael Billing, Karl Sallin, Elizabeth Hultcrantz, Gellert Tamas, Anne-Liis von Knorring
Duração: 40 mim.