“Sempre olhe pelo lado bom da vida. Sempre olhe pelo lado iluminado da vida.”
Contém spoilers.
Monty Python é, indiscutivelmente, um dos maiores grupos de comédia da história. Tal intitulação, extremamente respeitada, percorre diversas habilidades, reveladas, primeiramente, na televisão, local onde o grupo criou e estrelou Monty Python’s Flying Circus. No cinema, porém, a turma alcançou status ainda mais grandiosos, talvez imbatíveis. Não apenas o primeiro dos seus filmes é considerado um dos melhores do gênero da comédia – no caso, Monty Python em Busca do Cálice Sagrado – como o segundo, A Vida de Brian, também recebe alcunhas similares, sendo lançado 10 anos depois da estreia do, já citado anteriormente, seriado composto por esquetes. Se a primeira obra cinematográfica do grupo era uma sátira da história do Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda, A Vida de Brian tem seu argumento baseado na época em que Jesus viveu, acabando por satirizar diversas passagens bíblicas, embora não confronte a figura religiosa de Cristo individualmente.
Eric Idle, membro da trupe, em resposta ao porquê do filme não brincar com esta imagem sagrada em específico, apontou: “ele não é particularmente engraçado, o que ele fala não é motivo de piada, são coisas muito decentes”. Ao incorporarmos essa linha de raciocínio no longa-metragem, a escolha por uma presença reduzida da figura máxima do cristianismo transforma-se em um pequeno demérito, oriundo de certa incoerência, visto que, no início da obra, Jesus é bastante referenciado, com direito a uma aparição física, representado pelo ator Kenneth Colley. Todavia, o personagem termina sendo deixado de lado, sem retornar para a narrativa e sem recriar os mesmos contrastes de antes. De qualquer forma, embora possua estes pesares iniciais, comparando-se com Em Busca do Cálice Sagrado, A Vida de Brian é uma produção realmente corajosa; não necessariamente mais genial que a anterior, mas certamente mais polêmica. “Um filme tão engraçado que foi proibido na Noruega”, dizia cartaz sueco.
Em primeiro lugar, o filme nos possibilita acompanhar a história do menino Brian, interpretado por Graham Chapman, a qual começa paralelamente a de Jesus, visto que ambos nascem no mesmo dia, sob as mesmas estrelas e o mesmo luar. Os três reis magos então surgem em cena, confundindo o bebê de Mandy (Terry Jones, em interpretação maravilhosa) com o filho de Deus, que também acabara de ter nascido, mas em um estábulo a poucos metros de distância daquele. Dali em diante, o grupo Monty Python torna-se o nosso guia nessa hilariante jornada, conduzindo-nos do nascimento do menino a sua derradeira morte. A vida de Brian, espaço ocupado entre esses dois extremos, é protagonizada pelas mais diferentes personalidades, muitas destas a servir como crítica, na criação de arquétipos, de aspectos da sociedade. A obra estampa diversas das contradições sociais da época; refletidas, invariavelmente, no presente – uma espécie de metamorfose imutável, traduzida com muito humor pelo grupo.
Dada a presença dos reis magos, evidencia-se na mãe de Brian, interessada no ouro trazido pelos sábios homens, uma ganância, transmitida ao público de uma forma realmente cômica; nesse ponto em específico, até crível. Da mesma maneira, em outras construções, diferentes caracterizações para diferentes personagens são atribuídas a partir de piadas. O povo da Judeia, aliás, é outro coadjuvante desse cenário, visto que, em inúmeras passagens, promove-se uma cutucada, por parte da trupe de comédia, às correntes de convenções postas pelos homens em seus próprios pés. Em cena impagável, um mercador, interpretado por Idle, se recusa a realizar uma venda a Brian, porque o protagonista ousou pagar o preço integral pelo produto, enquanto deveria ter, como de costume, barganhado. Agora nada crível, o exagero, além de apontar para algum lugar da realidade, ainda é parte de um dos lados mais inspirados do grupo: o nonsense.
A Vida de Brian, dessa forma, é transformada pelos seus responsáveis em uma comédia que sabe mesclar todas as vertentes mais aguçadas do grupo. Uma obra com tanto potencial que George Harrison, ex-integrante dos Beatles, a financiou na época, com o mero intuito de vê-la se tornar realidade, levando-a para as telas dos cinemas que se permitiram exibir uma obra tão controversa quanto essa. Sendo assim, observa-se, no resultado, um visível orçamento mais encorpado que o de Em Busca do Cálice Sagrado. As construções são maiores, os cenários mais ricos e a quantidade de figurantes aumentada exponencialmente, vide o momento que reencena o Sermão da Montanha, importante discurso de Cristo. Da Bíblia Sagrada, Pôncio Pilatos é o único personagem que ganha um papel significativo nesta trama, sendo incorporado por Michael Palin, em ótima forma, moldando a voz de uma maneira peculiar. A interpretação do ator torna-se a piada por si só, mesmo que aliada a outros adereços humorísticos.
No caso de Pilatos, o humor não precisa necessariamente de um embasamento social. Monty Python sabe a hora certa de ser mais infantil, colocando o povo e o espectador para rir, incessantemente, mas com naturalidade, do nome de um dos amigos mais próximos do governador – Biggus Dickus, um dos poucos outros personagens que também ganham vida no corpo de Graham Chapman. As icônicas performances vão além, adentrando a obscuridade de frentes populares, as quais, apesar de lutarem por ideais parecidos, se diminuem ao preferirem mais a separação do que a união. Qual seria a real diferença da Frente Popular da Judeia para a Frente Popular Judaica? Qual é o real intuito dessa revolução, se nem ao menos os rebeldes entendem pelo que lutam? Sabemos que não é porque os romanos nada fizeram por eles – não esqueçam do aqueduto e do saneamento básico. O público irá rir de todas essas piadas, com gargalhadas ou não, mas a genialidade também vai além do simples âmbito lúdico.
Caminhando por essa via, também é possível aproximarmos a figura de Brian com a de Jesus Cristo, comparando-nas, ao passo que a do protagonista do filme assume uma posição cética, completamente descrente, emulando frases de outros numa tentativa de disfarçar sua real natureza, mas ganhando os créditos e os seguidores apesar disso. Em uma das viradas do filme, o personagem acaba sendo aclamado pelo povo como o Messias, perseguido por uma quantidade enorme de pessoas, fiéis automáticos. Contudo, o envolvimento de Brian com uma dessas organizações rebeldes destinadas a combater Roma com todas suas forças, princípio de toda essa confusão, não se dá por qualquer chamado ao dever, heroísmo ou altruísmo. Afinal, Brian se une à Frente Popular da Judeia mediante seu mero interesse em uma das participantes, Judith (Sue Jones-Davies). Como diria a mãe de Brian, inesquecível personagem de Terry Jones, “ele não é o Messias, ele é um garoto safado”.
Toda a jornada do personagem é de fuga, seja de soldados romanos, seja de fanáticos religiosos; o intuito é a separação de qualquer responsabilidade maior, desconstruindo-se, assim, o significado de “herói”. Na trajetória percorrida, Monty Python escancara de vez a facilidade que as pessoas têm em seguir falsos líderes. São dogmáticos, incapazes de serem contrariados, mesmo quando o próprio líder, a figura de admiração, assume posição contrária àquela do senso comum. A Vida de Brian, nesse sentido, é uma produção bastante atemporal, mais séria e afiada que a anterior, especialmente no seu final. Com bastante humor, chegando no ápice de toda essa jornada do herói colocada de cabeça para baixo, Reg (John Cleese) e os demais participantes da Frente Popular da Judeia permitem, de certa forma, que o protagonista seja, enfim, crucificado. Tudo pelo bem da causa, visto que a criação de mártires é um dos sustentáculos de ideais longevos. A conclusão é encaminhada.
Sob um último plano de análise, o roteiro também acerta no desenrolar da narrativa, sabendo amarrar algumas das tiradas cômicas com outras posteriores. Em Busca do Cálice Sagrado tinha seu caráter episódico, mas que funcionava, enquanto essa produção segue um raciocínio de causa e consequência mais evidente. Mais tarde, O Sentido da Vida, último longa-metragem do grupo, iria explorar a estrutura segmentada em toda a sua glória, buscando possibilidades em uma narrativa não-tradicional, mais similar ao formato da série televisiva. As produções cinematográficas de Monty Python, dessa forma, mostram-se únicas, renovando-se em corpo e conteúdo. A exemplificar esse ponto de costura, uma certa piada, durante o clímax da obra, relacionada com a maneira exótica de Pôncio pronunciar – ou não saber pronunciar – determinada consoante, dá margem a uma decisão narrativa que, mais para frente, se subverte completamente na resolução épica do filme.
A repetição situacional, por outro lado, é um aspecto da trama devidamente problemático, visto que Brian há de recorrer a fugas concretas, perseguido incessantemente por soldados romanos, mais de uma vez no enredo. Mostra-se, portanto, certa estagnação do grupo em relação a renovação da narrativa dentro da própria. Apesar disso, um pequeno desvio em um mar de acertos, mas que não chegou a ser dividido ao meio, retornamos ao final dessa jornada hilária – e também trágica. As perseguições acabaram, e Brian já foi libertado dessas amarras. Mas qual Brian? Brian e a mulher dele que também se chama Brian? Quem seria o Brian certo, o verdadeiro? A realidade é que qualquer um daqueles homens condenados a morrer poderia ser o protagonista. A grande concentração de coisas, piadas e objetos permite a desmitificação de muitas das crenças mundanas. A Vida de Brian desconstrói, para permitir o público construir por ele mesmo.
A ideia de lideranças falsas já fora estabelecida, criadas por aqueles no poder, ou até mesmo por aqueles que não estão, mas anseiam por algo a acreditar, nem que seja em milagres inexistentes. A mãe chora pelo filho vagabundo, e a mocinha pelo sacrifício do amante. O nonsense mescla-se com uma tragédia ímpar. O mundo está tão perdido quanto a vida de Brian, mas isso apenas é notável quando olhamos por um lado desta moeda irônica e não pelo iluminado. Que bom que os noruegueses não assistiram a esse filme. Ninguém mais o persegue, por fim, mas a prisão tomou a sombra de uma cruz, imagem sagrada que é intencionalmente banalizada nesse filme; várias cruzes, indiferentes às pessoas pregadas nelas. Nenhuma multidão para ver o mártir morrer. A ironia encontra espaço propício na canção, outro dos pontos fortes do grupo. Crucificação ou liberdade? Esquece isso, vamos rir, assobiar e olhar pelo lado bom da vida. Isto ajudará as coisas a mudarem para melhor.
A Vida de Brian (Life of Brian) – Reino Unido, 1979
Direção: Terry Jones
Roteiro: Monty Python
Elenco: Graham Chapman, John Cleese, Terry Gilliam, Eric Idle, Terry Jones, Michael Palin, Terence Bayler, Carol Cleveland, Kenneth Colley, Neil Innes, John Young, Gwen Taylor, Sue Jones-Davies, George Harrison
Duração: 93 min.