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Crítica | A Última Onda

Um thriller espiritual com profundas raízes australianas.

por Ritter Fan
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Depois do sensacional Piquenique na Montanha Misteriosa, adaptação de famoso romance de Joan Lindsay, Peter Weir decidiu continuar o mesmo caminho da abordagem onírica e enigmática que coloca o colonialismo em conflito com a ancestralidade da terra. Desta vez, porém, ele transporta a narrativa temporal e espacialmente para o presente e para um centro urbano, no caso Sydney, além de retirar literal e figurativamente o véu que suavizava a visão de sua obra anterior, emprestando ao seu novo longa ao mesmo tempo mais realismo e mais magia, uma contradição em termos, mas que faz sentido depois da experiência audiovisual que é A Última Onda.

Mais uma vez, Weir aposta no sensorial e, enquanto Piquenique colocava os aspectos visuais em primeiro plano, com a direção de arte de David Copping e a direção de fotografia Russell Boyd tomando de assalto a película, em A Última Onda há uma atenção especial dada à arquitetura sonora construída cuidadosamente pela edição de Greg Bell e mixagem de Phil Judd que opõe o urbano, o metálico e o concreto às forças da natureza, eminentemente representada, aqui, pela água, seja na improvável e violenta tempestade de granizo em um céu completamente sem nuvens na região central da Austrália que abre o longa, seja na constante chuva que assola Sydney ou até mesmo na banheira que transborda e alaga a casa em que o advogado branco de classe média alta David Burton (Richard Chamberlain) vive sua vida normal com sua esposa Annie (Olivia Hamnett) e suas filhas Sophie (Katrina Sedgwick) e Grace (Ingrid Weir, filha do diretor, claro). É um dos raros filmes em que o som é verdadeiramente um personagem, funcionando como elemento embebido na narrativa.

Por essa razão, e pela forma como Weir alia som às imagens fantasmagóricas das visões que David passa a ter mais ou menos a partir do momento em que aceita defender quatro aborígenes em um caso de assassinato de outro aborígene do lado de fora de um bar de temática irlandesa em plena cidade, o filme pode ser encarado até mesmo como um thriller, mas de um tipo bem específico que eu nem sei se existe de verdade ou se é algo que eu tirei aqui da minha cartola, o thriller espiritual. A tensão não vem exatamente dos elementos comuns aos thrillers, como perseguições, desenvolvimento dos mistérios e a construção de um final apoteótico, mas sim de uma jornada interior de David, que acorda para um mundo mágico, místico e ancestral quando passa a perceber que suas visões são mais do que apenas sonhos, pesadelos ou alucinações, são premonições, o que tira o tapete da “vida normal” sob seus pés e o faz mergulhar em um mundo que o real e o imaginário não mais são separáveis.

É fundamentalmente importante que David seja caracterizado como ele é no início e que sua esposa, em uma das várias excelentes linhas de diálogo do filme, diga que ela vem de uma família que está na Austrália há quatro gerações, mas que ela nunca havia visto um aborígene pessoalmente. Weir constrói o choque entre povo invasor e do povo original criando não exatamente obstáculos, mas sim uma ponte que é justamente David, inexplicavelmente sendo capaz de trafegar entre esses dois mundos. Além disso, para que o filme realmente funcione, Weir faz de dois dos seis aborígenes que vemos no longa verdadeiros personagens que estão ali para mostrar esse novo caminho a David. Nandjiwarra Amagula vive Charlie, uma espécie de xamã de uma rara tribo urbana que descende da que originalmente vivia na região onde toda a cidade foi construída, com suas auras tanto de mistério quanto de ameaça caminhando de mãos dadas, muito mais um personagem-entidade do que um personagem efetivamente relacionável. Por seu turno, o lendário David Gulpilil, que seis anos antes iniciara sua carreira cinematográfica no inesquecível A Longa Caminhada, vive uma espécie de irmão espiritual de David, alguém que estabelece, desenvolve – e, de certa maneira, explica – o contexto de tudo o que ocorre.

Novamente com Boyd na fotografia, que faz ótimo uso de câmeras posicionadas atrás de superfícies translúcidas, o longa consegue ser uma exemplar encarnação audiovisual da inquietude e do desconforto, sentimentos que invadem a vida e a mente de David como uma nuvem de gafanhotos e que ganham ecos audiovisuais que levam o espectador a sentir o mesmo, mesmo que, por vezes, a montagem de Max Lemon deixe a desejar na costura narrativa, lidando de maneira menos do que ideal com a passagem de tempo quando essa percepção é ainda possível no longa, claro. A pegada é sensivelmente mais realista, mesmo quando os sonhos premonitórios de David ganham destaque, mas em um trabalho conjunto com a equipe de edição e mixagem sonoras, A Última Onda consegue adentrar o sempre difícil espectro do realismo mágico, lentamente tirando os pés de David (e do espectador por tabela, claro) do chão firme e colocando-os em superfícies mais instáveis. E, nesse processo, Weir consegue algo muito difícil, que é extrair uma atuação fora de série de um ator que, muito sinceramente, nunca foi especial. O David Burton de Richard Chamberlain é, sem dúvida alguma, o melhor papel do ator e, mais do que isso, é um excelente trabalho dramático mesmo fora da comparação com o restante de sua carreira, um genuíno e complexo despertar de um homem para outra vida. Ajuda muito que as presenças marcantes tanto de Gulpilil quanto de Amagula funcionem como contrapontos ao “homem normal” do ator americano.

Alguns podem ter reações negativas sobretudo ao final do longa, acusando-o de abrupto ou de saída fácil, mas tenho para mim que, assim como foi o caso de Piquenique na Montanha Misteriosa, Peter Weir não tinha a menor intenção de solucionar mistérios, de investigar os acontecimentos ou de entregar visões definitivas sobre o que aconteceu ou deixou de acontecer. Afinal, o que realmente importa é a jornada – um clichê, eu sei, mas que é verdade em muitos filmes – e, mesmo que o final cultive o mistério, o que temos não é mais do que a manutenção da dubiedade, da latitude para interpretações. Sim, é um final aberto e sim é razoavelmente brusco, mas é que as dúvidas permanecem também em David Burton até o fim e não há solução para o tema apocalíptico de suas premonições, pelo que não é incongruente que o fim seja apenas “um” fim. E, para mim, que fim!

A Última Onda (The Last Wave – Austrália, 1977)
Direção: Peter Weir
Roteiro: Peter Weir, Tony Morphett, Petru Popescu
Elenco: Richard Chamberlain, Olivia Hamnett, David Gulpilil, Fred Parslow, Vivean Gray, Nandjiwarra Amagula, Walter Amagula, Roy Bara, Cedrick Lalara, Morris Lalara, Peter Carroll, Athol Compton, Hedley Cullen, Michael Duffield, Wallas Eaton, Jo England, John Frawley
Duração: 106 min.

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